novembro 08, 2008

A violência doméstica e as pesquisas de vitimização - Bárbara Soares

Campanha contra a Violência Doméstica em Portugual
A violência doméstica e as pesquisas de vitimização - Bárbara Soares

Barbara Musumeci Soares*

Em 1988, o IBGE realizou a primeira pesquisa com dados sobre vitimização, em âmbito nacional,[1] a qual representou, durante muito tempo, a única referência disponível para os(as) estudiosos(as) da violência, ao lado dos dados de mortalidade do Sistema de Saúde. Além de visar os atos delituosos que teriam vitimado a população, essa pesquisa trouxe alguma luz sobre a violência interpessoal e permitiu, ainda, que se vislumbrassem certos aspectos da violência contra a mulher. Ela mostrou que 63% das vítimas de violência no espaço doméstico eram mulheres e em mais de 70% dos casos, o agressor era seu próprio marido ou companheiro. A veiculação desses dados foi fundamental, naquele momento, para revelar uma outra dimensão da violência e para desmistificar a imagem da família, como um nicho de paz e harmonia. Porém, a pesquisa tinha um caráter genérico e não se propunha a distinguir os tipos de agressão experimentados na intimidade, além de não dispor de instrumental próprio para isso. Dados mais precisos sobre a violência doméstica e suas especificidades permaneceram ainda por um bom tempo desconhecidos. Foi somente em 2001, quando A Fundação Perseu Abramo realizou a pesquisa A Mulher Brasileira nos Espaços Públicos e Privados,[2] que tivemos novas informações nacionais, com algum nível de complexidade, a respeito da vitimização feminina, dentro e fora do ambiente familiar. Contudo, apesar de produzir dados mais aprofundados, essa pesquisa propiciou uma visão apenas parcial da violência doméstica, na medida em que contemplou somente a perspectiva das vítimas femininas.

Desde então, mais três pesquisas, apenas, focalizaram a violência em âmbito nacional ou através da comparação entre regiões[3], tal como se verá adiante. Duas delas também se restringiram à violência contra mulheres e a terceira, tal como no levantamento do IBGE, abarcou ambos os sexos, mas não chegou a discriminar os tipos e níveis da violência interpessoal registrada. Não dispomos, portanto, até o presente momento, de uma pesquisa brasileira, que contenha informações consistentes sobre os padrões, a magnitude, as conexões e os impactos das violências a que estão submetidos, tanto homens quanto mulheres, em diferentes contextos.

Ocorre que as áreas de pesquisa sobre a violência se mantêm, via de regra, isoladas umas das outras e as diversas formas de vitimização experimentadas no dia-a-dia são analisadas como se não guardassem, entre si, nenhuma relação. Os(as) pesquisadores(as) que se ocupam da criminalidade urbana tendem a desconsiderar a violência intra-familiar, como se ela não fizesse parte dos problemas ligados à segurança pública. Por sua vez, os(as) que estudam a violência doméstica, ou a violência de gênero[4], se limitam a compilar dados sobre mulheres, considerando-as previamente como vítimas, produzindo assim, reiterações de suas próprias premissas. Grosso modo (excetuando-se uma parte dos crimes sexuais), tudo se passa como se o fenômeno da violência estivesse repartido em dois pólos independentes. O espaço público estaria reservado aos homens (que são, de fato, os que mais matam e os que mais morrem) e o mundo doméstico seria o lugar, por excelência, da vitimização feminina e infantil (onde existe, sem dúvida, a prevalência de casos de mulheres e crianças). Entretanto, tais dicotomias, que correspondem provavelmente às tensões entre campos em disputa no cenário das políticas sociais, expressam apenas uma meia verdade. Há muito mais conexões do que se costuma considerar entre as agressões ocorridas dentro de casa e na rua e, nesses contextos, muito mais superposições entre familiares e desconhecidos ou entre vítimas e agressores.
Mesmo quando as pesquisas tratam apenas da esfera doméstica, essa fragmentação das perspectivas também se reproduz: de um lado encontram-se os estudos que focalizam exclusivamente a violência contra as mulheres, cuja premissa é a centralidade da questão de gênero e da dominação masculina, e de outro, estão os estudos sobre a violência contra crianças e adolescentes, que apontam as mulheres/mães como as principais agressoras.

Paradoxalmente, a segmentação desses universos de observação acaba se expressando, justamente, na geração de dados que superpõem e diluem realidades distintas. É o que este artigo procura mostrar, ao analisar particularmente as estatísticas sobre violências interpessoais, apontando as implicações da falta de diálogo entre os diversos campos a partir dos quais elas são estudadas. O que se está sugerindo é que a fragmentação das abordagens impede uma apreensão sistêmica dos fenômenos, ora porque os dados descontextualizados perdem seu significado, ora porque fatos e situações diferentes se misturam em uma mesma categoria analítica, comprometendo a fidedignidade das informações e, de alguma forma, sustentando mitos e estereótipos.

Observemos os dados sobre agressões e ameaças gerados pelas quatro pesquisas mencionadas acima: em 2002, o ILANUD[5] realizou uma pesquisa em quatro capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Vitória)[6]. Os resultados sugeriam que os níveis de agressão interpessoal, nesses locais, eram relativamente reduzidos e pouco diferenciados por gênero: 7% das mulheres e 8% dos homens entrevistados relataram algum episódio de violência física ou ameaça de violência, nos cinco anos anteriores às entrevistas. Entretanto, os(as) entrevistados(as) foram indagados sobre a violência interpessoal, na seqüência de uma série de perguntas sobre crimes contra a propriedade, sem que se distinguissem os tipos de agressão e, tampouco, se teriam sido ameaças ou atos consumados, isto é, misturaram-se violências físicas e psicológicas e sem discriminação do grau de severidade dos atos[7].

No ano anterior, a Fundação Perseu Abramo havia realizado a pesquisa sobre mulheres, referida acima, da qual constava um módulo sobre a violência. Segundo essa pesquisa, 19% das brasileiras declararam espontaneamente ter sofrido algum tipo de violência, cometida por um homem, em algum momento da vida e 16% relataram casos de violência física, nas mesmas condições. Quando estimuladas pela citação de diferentes formas de agressão – o que permitiu ultrapassar a barreira das interpretações subjetivas e culturais sobre o que seja violência - 43% declararam já ter sofrido alguma violência e 33% se identificaram como vítimas de violência física.

Considerando-se os cinco anos que antecederam as entrevistas, para que as duas pesquisas possam ser comparadas, verifica-se que a proporção de 7% de mulheres que, no levantamento do ILANUD, mencionaram qualquer uma das formas de violência, física ou emocional, se aproxima ao das mulheres que, para a Fundação Perseu Abramo, declararam ter sofrido, exclusivamente, agressões graves perpetradas por algum homem. Dito de outro modo, apenas o último episódio de espancamento que teria deixado marcas, cortes ou fraturas teria vitimado 6,4% das entrevistadas[8]. Este dado exclui as agressões menos severas, como tapas, empurrões, apertos e sacudidelas, mencionados por 12% delas. Exclui ainda todas as violências psicológicas ou emocionais, também agregadas nos percentuais da pesquisa anterior, como as ameaças, xingamentos, cerceamento etc.. Para que se tenha uma idéia melhor das discrepâncias, somente as ameaças com arma de fogo, nesse mesmo período, foram mencionadas por 4% das mulheres.

Em suma, o impacto das diferenças entre enfoques, abordagens, tipos de pergunta e pesos atribuídos às distintas formas de violências se revela claramente na comparação dos resultados das pesquisas de vitimização. O fato merece atenção, uma vez que esses resultados contribuem para conformar as percepções sociais sobre a violência e para subsidiar propostas legislativas e políticas públicas.
Uma outra pesquisa, desenvolvida entre 2001 e 2002, pela Organização Mundial de Saúde, no município de São Paulo e na região da mata Pernambucana[9], adotou um foco ainda mais restrito do que as duas primeiras aqui mencionadas, abrangendo somente as mulheres agredidas por seus parceiros ou ex-parceiros. Neste caso, 27% das mulheres de São Paulo, e 34% das de Pernambuco relataram algum episódio de violência física cometida pelo parceiro ou ex-parceiro ao longo da vida[10] Não há como estabelecer correspondências diretas, mas em princípio, os resultados não parecem se chocar com aqueles da pesquisa efetuada pela Fundação Perseu Abramo, segundo a qual o parceiro (atual, no momento da entrevista) era o principal agressor – o que variava de 53%, quando se tratava de ameaça à integridade física com armas, a 70% nas “quebradeiras” dentro de casa.

Em 2005, o DATASENADO, órgão de pesquisa do Senado Federal, realizou o primeiro levantamento telefônico sobre violência contra a mulher em âmbito nacional[11]. Entretanto, também aqui não foram adotados os protocolos específicos para abordagem da violência familiar, sendo utilizadas apenas perguntas genéricas, do tipo “a senhora já foi vítima de algum tipo de violência?”. Ainda assim, 17% das mulheres entrevistadas, afirmaram já ter sofrido alguma forma de violência doméstica ao longo de suas vidas.

As quatro pesquisas mencionadas, todas elas posteriores ao ano 2000, representam um passo importante no mapeamento da violência interpessoal e uma contribuição importante para seu enfrentamento. O campo de produção de dados nessa área se beneficiará e crescerá, certamente, tanto a partir de suas virtudes, quanto pelo esforço de superar suas lacunas. Com esse espírito, cabe lembrar que um dos limites da pesquisa do ILANUD, decorrente do fato dela não levar em conta as especificidades da violência doméstica, é justamente não permitir que se distingam as formas e as dinâmicas que geraram as agressões e ameaças reportadas por homens e por mulheres. Não se sabe, como vimos, se foram tentadas ou consumadas, leves ou severas, nem se decorreram de conflitos conjugais, de uma briga entre desconhecidos ou no contexto de dinâmicas criminais, para citar apenas algumas possibilidades. Desse ponto de vista, os dados sobre agressões deixam de ter significado.

Por outro lado, vale insistir, as pesquisas focadas somente na vitimização de mulheres acabam apenas por provar, independentemente dos resultados obtidos, as teses políticas que as motivaram. O que significa dizer que 33% das mulheres brasileiras já sofreram alguma forma de violência física e que a maior parte dessa violência foi praticada por seus companheiros ou ex-companheiros? Que informação esse dado nos traz, se ele trata unilateralmente, de uma violência que é, por natureza, relacional? Em outras palavras, qual a rentabilidade de uma informação parcial sobre o número de mulheres agredidas, dentro e fora de casa, se não sabemos a proporção em que os homens também o são, nas mesmas condições e, tampouco, em que condições as mulheres são agredidas fora do contexto familiar? Sem essas distinções, como identificar a natureza e a relevância dos fenômenos em questão?

O British Crime Survey[12], de 2004, baseado em uma amostra de 22.463 mulheres e homens de 15 a 59 anos, na Inglaterra e no País de Gales, continha um módulo específico sobre a violência doméstica, cuja aplicação seguiu os preceitos técnicos recomendados para tal fim. Segundo esse levantamento, no ano precedente, 4% das mulheres e 2% dos homens haviam sido agredidos ou ameaçados pelo(a) parceiro(a) íntimo(a). Agregando-se os abusos emocional e econômico, os percentuais se elevavam para 6% e 5%, respectivamente. Os impactos também foram amplos: avaliando o pior incidente do último ano as agressões físicas entre parceiros ou ex-parceiros causaram ferimentos leves em 46% das mulheres e em 41% dos homens vitimados(as). Todavia, as lesões graves foram relatadas por 6% das mulheres e por 1% dos homens apenas[13]. A pesquisa confirma a predominância da vitimização feminina, mas traz à luz um outro fenômeno ainda pouco reconhecido, que é o da vitimização masculina no cenário da violência conjugal e, o que é mais importante, permite conhecer melhor, face aos múltiplos delitos e às seqüelas que eles produzem, os diferentes padrões de vitimização, bem como seus impactos nos homens e nas mulheres[14].

O mesmo se observa em relação aos dados do National Violence Against Women Survey, analisado em 2000, no relatório veiculado pelo Departamento Nacional de Justiça norte-americano, intitulado Extent, nature, and consequences of intimate partner violence[15] . Trata-se de pesquisa feita por telefone, com uma amostra de 8.000 entrevistas com mulheres e 8.000 com homens, realizadas também de acordo com as normas prescritas. Os resultados reiteram, igualmente, a prevalência da vitimização feminina, mas permitem ver que a violência doméstica é um fenômeno mais complexo do que se costuma admitir: segundo essa pesquisa, 44,2 em cada mil mulheres e 31,5 em cada mil homens seriam vítimas de agressão física conjugal a cada ano. Considerando-se a gravidade do último episódio, as diferenças entre homens e mulheres não foram significativas: em média, as vítimas masculinas e femininas foram atendidas em serviços médicos de emergência 1,1 e 1,9 vezes, respectivamente. As principais diferenças aparecem nos casos de estupro (entre parceiros), quando a proporção passa a ser de 3,2% e de 0%, respectivamente.

Do vasto conjunto de variáveis analisadas nas duas pesquisas, destacamos somente algumas poucas, vinculadas à violência doméstica conjugal, para ilustrar a importância do refinamento dos dados e os riscos das abordagens unilaterais. Já nas décadas de 1970 e 1980, nos Estados Unidos, a imagem da família, em seu conjunto, havia sido abalada pelas duas aplicações do National Family Violence Survey[16], que apontou a incidência de agressões generalizadas entre casais, entre pais e filhos e entre irmãos. Pelos dados do levantamento replicado em 1985, 16% dos casais norte-americanos teriam se envolvido em alguma forma de violência física no ano referente à pesquisa e 6,3% haviam experimentado algum tipo de violência grave, como chutes, socos e esfaqueamento. Segundo o survey, 12,4% dos maridos agrediram as esposas (3,4% gravemente) e 11,6% das mulheres agrediram seus maridos (4,8% gravemente).

Mais do que a mera competição mórbida entre vítimas preferenciais, em casa ou na rua, esses dados ajudam a conformar cenários mais dinâmicos, que nos previnem contra as dicotomias simplificadoras. Considerar, por exemplo, que os homens podem ser vítimas em suas próprias casas e que as mulheres podem ser agredidas fisicamente em outros contextos que não apenas o doméstico, nos obriga a reconhecer a existência de novas configurações da violência e a construir um instrumental mais sensível para captá-las. Uma possibilidade é o emprego da Escala Tática de Conflitos, utilizada no National Family Violence Survey, nos Estados Unidos e adaptada a alguns estudos no Brasil (IBGE, 1999; Moraes, C.L. et al, 2002; Reichenheim ME et al, 2006)[17] . Essa escala, busca medir a freqüência do uso de táticas de confronto, tais como uso da razão, recurso a terceiros, gritos, ataques físicos e ameaças com armas (Straus, M. 1990[18]). Ainda que, por motivos econômicos e culturais, seja difícil utilizar, no Brasil, os longos questionários com detalhadas perguntas sobre cada ato violento, é fundamental incorporar às pesquisas de vitimização um conjunto de perguntas, dirigidas, evidentemente, a homens e mulheres, com todos os cuidados éticos e técnicos que a situação exige, e que sejam capazes de expressar o gradiente de práticas violentas, sofridas e perpetradas por ambos.

Finalmente, vale dizer que a repartição dos campos de pesquisa em áreas incomunicáveis não parece ser um problema exclusivamente brasileiro. Para citar dois exemplos de países latino-americanos, a pesquisa de vitimização realizada na Colômbia (em Bogotá, Cali e Medellín), pelo Departamento Administrativo Nacional de Estadística, DANE, em 2003/2004, trata também, de forma indistinta, das agressões interpessoais. A dificuldade de extrair algum significado de dados sobre agressões e ameaças, que misturavam múltiplas realidades, levou, inclusive, o Instituto de Medicina Legal colombiano a recomendar a mudança no questionário. Por sua vez, o Instituto Nacional de Estadística Geografia e Informática, do México, na sua pesquisa domiciliar de 2003[19], aborda somente a violência contra mulheres, ainda que sob o título “violência familiar”. Mesmo no documento anual de veiculação de estatísticas nacionais, intitulado “Mujeres y Hombres en México”, o capítulo sobre violência familiar trata exclusivamente da vitimização de mulheres.
Em resumo, este artigo procurou chamar a atenção para os seguintes aspectos:

a) A violência doméstica e/ou de gênero não é pensada como um problema de segurança e, dessa forma, não é incorporada, com os devidos cuidados, às pesquisas que enfocam a criminalidade violenta[20]. Dessa forma, a violência perde um de seus componentes.

b) Por outro lado, os dados sobre agressão e ameaça, tal como têm sido tratados nas pesquisas de vitimização, perdem significado, na medida em que agregam fenômenos de natureza distinta;

c) As pesquisas que focalizam exclusivamente as mulheres, acabam também produzindo dados esvaziados de sentido e reiterando acriticamente a vitimização feminina, como o único elemento constitutivo da violência conjugal.

d) Há vários recursos, já utilizados em diversos países, capazes de aferir, com maior precisão, as situações de violência interpessoal, particularmente, as de violência doméstica conjugal. Dispor de informações mais precisas, nesse plano, é condição fundamental para o desenvolvimento de políticas mais sensíveis à complexidade e à riqueza das experiências sociais.

* Bárbara Musumeci Soares é coordenadora da área de segurança e gênero do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes.

Este artigo foi publicado originalmente na página do IBGE.

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