fevereiro 22, 2009

O porto das Lajes e o racismo ambiental

Comunidade do lago do Aleixo, em época de cheia dos rios

Racismo ambiental

Por Rogelio Casado


O movimento social SOS Encontro das Águas enfrenta o racismo ambiental gerado pela construção do porto das Lajes. A resistência da sociedade civil organizada em defesa da cidadania (e do ecossocialismo) leva seus militantes a recorrer à Rede Brasileira de Justiça Ambiental

Os eixos da luta contra o porto das Lajes

O ponto de partida da luta do movimento social SOS Encontro das Águas contra a construção do porto das Lajes, próximo ao encontro das águas do rio Negro com o rio Solimões, não poderia deixar de envolver dois eixos: a agressão ao meio ambiente, com impactos sobre a reprodução dos peixes que serve à população local, e a agressão ao patrimônio paisagístico, com repercussões inevitáveis sobre a auto-estima dos amazonenses, e dos manauaras em particular, ao ser privatizado e destruído um dos símbolos da sua identidade cultural.

De símbolo em símbolo, no contínuo exercício de análise sobre os impactos ambientais e sociais que o porto inevitavelmente provocará no lago do Aleixo, em cujo entorno habitam 40 mil pessoas, recorremos à história para melhor compreender o que levou um grupo de cidadãos da sociedade civil organizada a abraçar a luta da comunidade contra esse e outros empreendimentos que vêm danificando o ambiente onde vivem.

Leprosário

Os moradores originais daquele território, em passado recente, limitavam-se aos cidadãos hansenianos internados na Colônia Antônio Aleixo, além dos familiares que vinham de todos os cantos do Amazonas para ficar próximos dos parentes. Alguns deles não tiveram tempo para viver a infância, passando da meninice para a velhice sem os ritos sociais conhecidos.

Francisco, pescador que embarcou na Caravana das Águas, no dia 15 de fevereiro, em protesto contra a construção do porto, relata que veio do rio Purus para morar na Colônia no início dos anos 1970 para ficar perto do irmão que contraíra o “Mal de Hansen”. Lembra da beleza deslumbrante do lugar, mas sobretudo da fartura do peixe que compõe até hoje a mesa da população que explodiria no lugar, logo após a desativação da Colônia.

Antônio, outro pescador, lamenta que atualmente empresas como a SOVEL lancem produtos químicos no lago, ameaçando a vida dos peixes e dos humanos que deles se servem. Segundo ele, as redes de pesca ao serem retiradas da água vêm cobertas por uma camada espessa de produtos químicos utilizados no tratamento industrial do papel. Intuitivamente sabe do mal à saúde provocado pelos agentes tóxicos, e se tivesse tido à chance de ir à escola teria tido acesso ao conhecimento científico que ratifica o saber popular ao identificar os riscos que metais pesados oferecem à cadeia alimentar.

Em todos os depoimentos que tive oportunidade de ouvir uma chocante conclusão: a ineficiência do Estado em garantir o direito a viver em ambiente saudável (todo o entorno do Distrito Industrial, agora em expansão rumo ao território onde se encontra o lago do Aleixo, com seus inúmeros igarapés e lagos,está contaminado). Para os comunitários, é o abuso do poder econômico que tem livrado muitas empresas de cumprir com seus deveres. Algumas empresas punidas chegam a pagar multas, mas continuam a poluir o ambiente.

Podres poderes

Refletindo sobre a luta contra esses podres poderes, fiquei a pensar o que levaria cidadãos manauaras a sair dos seus cuidados, revitalizarem entidades de luta pela cidadania (pelo menos no que nos diz respeito às classes médias letradas, já que a comunidade do Aleixo há anos enfrenta o poder econômico com o auxílio da Igreja Católica), e enfrentar o capital predatório.

Lendo o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos não pude deixar de concordar com ele em sua abordagem do fascinante personagem que foi Darcy Ribeiro para a cultura da resistência contra o poder colonizador. Vale lembrar que nascemos do colonialismo; que nosso útero foi a colônia.

Pois bem. Darcy, que é um desses raros marxistas com experiência etnológica de campo, dizia que “o povo brasileiro é um povo enjeitado, que não era para existir, não foi mentalizado, não foi projetado, intencionalmente não fazia parte do desígnio dos colonizadores”. Significa dizer, segundo GFV, que: “Somos um produto inintencional. Um fruto recusado. Um resultado indesejado. Um filho da puta. O que os colonizadores queriam [...] é apenas uma feitoria lucrativa, ou seja, um entreposto comercial para produzir lucros exportáveis”.

Em sendo assim, só nos resta, mal rompe a manhã, como operários do futuro, recomeçar a luta por idéias e ideais de solidariedade, único meio de enfrentar os desígnios colonialistas ainda presentes na cultura das relações entre sociedade civil e sociedade empresarial, entre o cidadão e o Estado.

Um conceito para iluminar a luta social

Identificada a população atualmente residente no entorno da antiga Colônia Antônio Aleixo, em sua maioria migrantes pardos vindos do interior do estado do Amazonas, reconhecida a opção pela não submissão aos interesses neocoloniais, e mapeado os apoiadores e parceiros na luta pela preservação/conservação do ambiente, continuei intrigado com o fato de que aquele território seja tratado como a “cloaca da cidade”.

Por trás da presença histórica dos hansenianos, outrora estigmatizados por uma leitura religiosa perversa da condição humana, somada à expansão de empresas poluidoras do meio ambiente, lugar da pobreza sujeito à indiferença social, o que mais poderia estar oculto nesse cruel e simbólico espaço de exclusão?

Eis que nas minhas pesquisas em busca de outras brechas existentes no interior dos aparelhos de Estado que, a serviço da democracia, acolhessem as demandas cidadãs, me deparo com um conceito que caiu como um raio de luz.

Assim que li a expressão racismo ambiental, intui por associação de idéias o que, como e por que paira sobre a comunidade do Aleixo tantas agressões ambientais num só território, não por acaso território periférico de Manaus.

O conceito “racismo ambiental” se refere a qualquer política, prática ou diretiva que afete ou prejudique, de formas diferentes, voluntária ou involuntariamente, a pessoas, grupos ou comunidades por motivos de raça ou cor. Ora, ora! A maioria da população do entorno da Colônia Antônio Aleixo e do lago do Aleixo é composta por pardos migrantes do interior do estado do Amazonas. Mas, vamos adiante.

Robert Bullard, sociólogo e diretor do Environmental Justice Resource Center, afirma no artigo “Ética e racismo ambiental” (*) que a idéia de racismo ambiental “se associa com políticas públicas e práticas industriais encaminhadas a favorecer as empresas impondo altos custos às pessoas de cor. As instituições governamentais, jurídicas, econômicas, políticas e militares reforçam o racismo ambiental e influem na utilização local da terra, na aplicação de normas ambientais no estabelecimento de instalações industriais e, de forma particular, os lugares onde moram, trabalham e têm o seu lazer as pessoas de cor”. Caramba! Macacos me mordam se essa descrição não se ajusta às agruras vividas pela comunidade do Aleixo.

Robert diz ainda: “A tomada de decisões ambientais muitas vezes reflete os acordos de poder da sociedade (pre)dominante (negrito meu) e das suas instituições. Isto prejudica as pessoas de cor, enquanto oferece vantagens e privilégios para as empresas e os indivíduos das camadas mais altas da sociedade. A questão de quem paga e quem se beneficia das políticas ambientais e industriais é fundamental na análise do racismo ambiental”.

Quando recomendei recentemente, num outro artigo, a leitura do conceito de classe social, diante do que está em jogo nessa luta simbólica entre Davis e Golias, insisto que essa leitura é indispensável, sobretudo para nossos aprendizes de Direito Ambiental.

Racismo à brasileira

Se o conceito de racismo ambiental atira no que vemos, acerta no que é negado na pauta do debate público brasileiro: o racismo em território nacional. Senão vejamos: “O racismo ambiental fortalece a estratificação das pessoas (por raça, etnia, status social e poder), o lugar (nas cidades principais, bairros periféricos, áreas rurais, áreas não-incorporadas ou reservas indígenas) e o trabalho (por exemplo, se oferece uma maior proteção aos trabalhadores dos escritórios do que aos trabalhadores agrícolas)”, afirma Robert Bullard.

O autor de “Ética e racismo ambiental” é definitivo ao concluir que “o conceito institucionaliza a aplicação desigual da legislação; explora a saúde humana para obter benefícios; impõe a exigência da prova às “vítimas” em lugar de às empresas poluentes; legitima a exposição humana a produtos químicos nocivos, agrotóxicos e substâncias perigosas; favorece o desenvolvimento de tecnologias “perigosas”; explora a vulnerabilidade das comunidades que são privadas de seus direitos econômicos e políticos; subvenciona a destruição ecológica; cria uma indústria especializada na avaliação de riscos ambientais; atrasa as ações de eliminação de resíduos e não desenvolve processos precautórios contra a poluição como estratégia principal e predominante. A tomada de decisões ambientais e o planejamento do uso da terra em nível local acontecem dentro de interesses científicos, econômicos, políticos e especiais, de tal forma que expõem às comunidades de cor a uma situação perigosa. Isto é particularmente verdade no Hemisfério Sul e, também, no Sul dos EUA, região que foi convertida numa “área de sacrifício”; um buraco negro para os resíduos tóxicos. Fora disso, ela está impregnada pelo legado da escravidão e pela resistência braça à justiça eqüitativa para todos”.

Márcio Souza em seu livro “A expressão amazonense – do colonialismo ao neocolonialismo” nos lembra que a integração econômica da Amazônia foi feita em detrimento da história e da tradição locais. Essa arrogância não desapareceu com o regime militar. Novos tecnocratas estão a serviço do capital predatório.

Rede Brasileira de Justiça Ambiental

O conceito acima chegou-me às mãos graças ao trabalho de pesquisa como assessor da Associação Amigos de Manaus – AMANA, uma das entidades que lutam contra a privatização e destruição do Encontro das Águas pelo porto das Lajes.

Percorrendo meus e-mails, encontrei um enviado em novembro de 2008 pela companheira Socorro Papoula. Militante dos movimentos sociais, ela preside atualmente o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Mulher.

Tratava-se nada mais nada menos do que um comunicado da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), do qual participam os GTs Químicos e de Combate ao Racismo Ambiental, que me levou à pesquisa do conceito.

Santa coincidência! A RBJA está realizando um levantamento para a organização de um Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e Saúde no Brasil - um projeto elaborado pela Fase e executado pela Fiocruz, com o apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Era só o que nos faltava!

O objetivo do formulário é recolher denúncias variadas, envolvendo injustiças ambientais e riscos para a saúde, se possível antes mesmo que o problema se torne uma ameaça real para as populações envolvidas. Além de disponibilizar essa informação para o Ministério e para as pessoas que têm o dever institucional de evitar que o problema se agrave, a RBJA estará igualmente socializando a questão entre as entidades da sociedade civil, possibilitando o monitoramento e a cobrança das ações governamentais a respeito.

Com a crescente adesão de entidades e cidadãos de boa vontade ao movimento social SOS Encontro das Águas, temos agora mais um instrumento na luta pela justiça ambiental.

A Associação Amigos de Manaus está encaminhando todos os dados pedidos pelo formulário da RBJA, os quais serão também utilizados, junto com tantos outros, para a organização das conferências locais e para a preparação da Conferência Nacional de Saúde e Meio Ambiente, prevista para outubro de 2009.

A luta continua!

(*) Fonte: AmbienteBrasil http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./educacao/index.php3&conteudo=./educacao/artigos/etica.html

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