fevereiro 17, 2009

Caravana das Águas: ambientalismo e cidadania

Foto: Rogelio Casado - SOS Encontro das Águas - Manaus-Am, 15.02.2009

Caravana das Águas: ambientalismo e cidadania

Por Rogelio Casado


A sociedade civil manauara desperta para as agressões ambientais que atingem a cidade de Manaus

O título lembra a célebre caravana de Lula pelos rios da Amazônia. Candidato à Presidência da República, interessava-lhe conhecer in loco a realidade do povo amazônida. Águas roladas, a caravana desvencilhou-se do nome e prosseguiu por outros estados brasileiros. Se o candidato aprendeu lições com os ribeirinhos e os indígenas da região, certamente já os esqueceu. Duas evidências preocupantes: o avanço do agronegócio e a construção de hidrelétricas, ambas sob forte crítica dos ambientalistas. Estão aí os exemplos da hidrelétrica de Balbina, em Presidente Figueiredo, no Amazonas, e a cultura da soja que vem destruindo o Mato Grosso.

A atual caravana foi pensada como uma estratégia para dar visibilidade à opinião pública brasileira e internacional sobre uma tragédia ecológica que se anuncia com a construção do Porto das Lajes, bem em frente do maior patrimônio paisagístico e cultural do estado do Amazonas: o Encontro das Águas.

A idéia da caravana nasceu numa das reuniões da Associação Amigos de Manaus - AMANA que acontece no Sindicato dos Jornalistas. Participam cidadãos e entidades da sociedade civil organizada: Centro de Direitos Humanos, da Igreja Católica, Núcleo de Cultura Política do Estado do Amazonas, da Universidade Federal do Amazonas, Sindicato dos Jornalistas, Associação Chico Inácio, entre outros.

SOS Encontro das Águas

A primeira manifestação publica da AMANA ocorreu no dia 17 de dezembro de 2008. Naquele dia a bióloga Elisa Wandelli leu um manifesto no mirante das Lajes, onde está situada a torre da Embratel, com sua vista deslumbrante. Logo abaixo, a jusante, pretende-se construir o Porto das Lajes, afetando um patrimônio geológico, composto por um tipo de falésia única no mundo, onde já foram encontrados fósseis de milhões de anos. Esse patrimônio da humanidade está sendo ameaçado pela incúria do capital predatório.

A empresa responsável pela construção do porto respondeu pelos meios de comunicação com um “não nos entenderam”. Partiram para a popularização da obra. Curiosamente, a oferta inicial de empregos saltou de 120 para 800. No processo de cooptação algumas supostas lideranças comunitárias deixaram-se seduzir. Puro oportunismo, afirmam os comunitários “escolados” depois de tantas promessas não cumpridas por empresários e agentes do poder público.

A segunda manifestação aconteceu domingo, dia 15 de fevereiro, com o triplo dos participantes da manifestação anterior. Por volta de 13h00 saíram em uma caravana composta por um ônibus e vários carros até a região das Lajes, e do lago do Aleixo rumaram, por barco, em direção ao Encontro das Águas.

Ambientalistas, jornalistas, cientistas e comunitários fizeram do encontro uma troca de saberes, tão importantes para a unidade de um movimento que aos poucos vem ampliando a diversidade de conhecimentos, saberes e visões políticas. Como afirmou um dos oradores: “Há 10 anos não sentaríamos à mesma mesa para conversarmos, dadas as diferenças que nos separavam. Sabemos o que nos separa, mas sabemos, sobretudo, o que nos une: o amor a Manaus”.

Agressão ambiental

Manaus vem sofrendo sucessivos impactos ambientais por administrações comprometidas com o capital predatório. Se algumas das intervenções mitigam o sofrimento daqueles que se sujeitaram a assentar-se nos leitos dos igarapés, outras provocam danos irreversíveis ao meio ambiente, como o entulho do Programa de Saneamento Ambiental dos Igarapés de Manaus (Prosamim), que se desobstrui por um lado, por outro lado aterra igarapés e suas nascentes no local que servirá para a nova captação de água, na zona Leste da cidade.

O caso do bairro do Aleixo, situado na zona Leste, é emblemático. Antes mesmo da expansão do Distrito Industrial, todos os igarapés do seu entorno estavam poluídos. Atualmente, a situação é crítica. Metais pesados estão sendo despejados inclusive no Rio Negro. Uma decisão judicial exigiu os devidos reparos ao meio ambiente. Até agora nada aconteceu.

Não há autoridade que desconheça o assunto. Do presidente da república ao prefeito da cidade, todos receberam pelo menos um documento enviado pela aguerrida comunidade do Aleixo. Fora do poder, em campanha eleitoral, comprometeram-se com as comunidades. Uma vez ali instalados, as promessas foram esquecidas. Lástima!

O descaso e a indiferença para com o futuro da qualidade de vida dos moradores da região foram as queixas mais constantes no discurso dos comunitários presentes na Caravana das Águas. Entre eles cidadãos hansenianos que habitam o lugar desde quando o leprosário da cidade era uma das poucas habitações do lugar. Se o estigma conservou a bela paisagem do Aleixo, o crescimento desordenado da cidade, e, sobretudo, a expansão do Distrito Industrial vem comprometendo o Lago do Aleixo e os igarapés da região.

Na verdade a idéia de construir um porto no Encontro das Águas, somada à poluição provocada pela expansão do Distrito Industrial – que há anos vem afetando a vida da população daquele território – , tem um simbolismo cruel: antigo lugar destinado ao leprosário da cidade, que compunha com o sanatório e o manicômio da cidade as três clássicas instituições totalitárias, mesmo após sua desativação no final dos anos 1970 o lugar continua estigmatizado ao ser tratado como uma cloaca da cidade. O mesmo não aconteceu com o sanatório, localizado em área nobre da cidade, que recebeu um outro tratamento, passando a denominar-se Hospital Adriano Jorge.

Guerreiros da liberdade

Diante de tanta beleza e tanto descaso das autoridades públicas, o sentimento que dominou a Caravana das Águas foi o de perplexidade e indignação. Vimos empresas que trabalham com madeira e celulose despejando dejetos no belo lago do Aleixo. Vimos pescadores e suas famílias trazendo seu alimento, sem saber que a cadeia natural da vida corre risco devido a contaminação das águas com metais pesados. Vimos crianças banhando-se à beira do rio Negro em lugares que fatalmente desaparecerão com a construção do porto, pondo fim ao mais refrescante dos lazeres manauaras.

É de se perguntar como os amazonenses, em particular os manauaras, podem assistir passivamente à destruição de um monumento da natureza tão importante para a sua identidade cultural, cujas imagens viajam mundialmente?

Alto lá!, responde a Associação Amigos de Manaus – AMANA, uma das entidades da sociedade civil organizada que participa do movimento SOS Encontro das Águas, e que esteve presente na Caravana das Águas ouvindo o depoimento de antigos e novos moradores da região, liderados pelo corajoso padre Orlando Barbosa. Para ela, se depender do Ministério Público, da sociedade civil organizada, dos empresários de boa vontade e da opinião pública esclarecida, o Porto das Lajes não passará.

Olhando a estonteante paisagem do Encontro das Águas, vi gente orando em silêncio. Quem sabe invocando o espírito de Ajuricaba, o líder guerreiro da tribo dos Manaós.

Segundo Marcio Souza, em algum ponto dás águas que formam o imenso tapete negro que se estende ao lado de um outro longo tapete amarelo caxiri (rios Negro e Solimões,) Ajuricaba teria proferido algumas palavras antes de ser lançado ao rio por soldados portugueses. Ei-las, agora, trazidas pela brisa do inverno amazonense:

Dos pensamentos meus que falam de amor
há um de tão grande formosura
que me faz desejar continuidade.
Esse amor não há outro nome,
e agora sussurro entre meus dentes,
para que o inimigo não ouça:
“meu povo lutará até morrer”.

Segundo Marcio Souza, três entidades míticas levaram Ajuricaba para a eternidade, após ter sido jogado nas águas, inspirando o seu povo a tornarem-se eternos guerreiros da liberdade.

Saúdo os guerreiros e as guerreiras que fazem da cidadania um exercício de liberdade. Em particular a comunidade do Aleixo, a bióloga Elisa Wandelli, o sociólogo Ademir Ramos e o padre Orlando Barbosa.

A AMANA vive através deles.

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Um comentário:

Astrid disse...

POR TODA PARTE O RIO


Por toda a parte o rio

solta serpente a rojar-se

na paisagem da planície

cobra domada à força por

barrancas e algemas de pontes

ou cativo fragmento no pote

na palma côncava do púcaro

no copo translúcido e mínimo

leite a pojar o seio das cuias.

Em águas batismais comungo

e mergulho o arcaico corpo de

remotíssimo passado anfíbio

nós todos tão sáurios tão

irmãos de peixes e quelônios

e espelho o rosto em fuga por

águas igualmente fugitivas

e comigo vai o rio rente rindo

roendo ruindo riando submim

num subsolo de sonhos.

Astrid Cabral (irmã das águas)