fevereiro 23, 2009

Memórias do hospício (IX)

Conjunto Habitacional Nova Cidade - periferia de Manaus-Amazonas-Brasil
Nota do blog: Bem diz o ditado popular: “Pimenta no c... dos outros é refresco!” Imagine que você, e mais 40 outras pessoas, passou a maior parte da sua vida num hospício; aí vem um grupo de reformistas de araque e bolam um plano mirabolante: doravante você vai morar no “aconchegante” conjunto Nova Cidade. Detalhe: o tal conjunto em nada lembra, com suas casas minúsculas, sem vegetação e sol abrasador, o lugar onde alguns dos proponentes residem. A diferença começa pelo nome: condomínios; com área verde preservada, espaços para sociabilidade, lazer e festas. Pior, no novo conjunto faltam equipamentos de saúde, cultura e de outros itens exigidos pela vida social. A idéia só não foi pra frente porque houve mudança de governo e uma nova coordenação no Programa Estadual de Saúde Mental, mais antenada com os interesses populares. Curioso é que contra essa arquitetura burra (perdoe-me, não existe classificação melhor, nem pior), em que o beneficiário é o capital predatório, que sacrifica o bem estar social em nome da lucratividade, salvo as exceções de praxe não houve manifestações em contrário. Ué! Em que argumentos se escondem as nossas universidades, que silenciam sobre as agressões ambientais que atingem a cidade de um extremo a outro, num divórcio inaceitável entre saberes e poderes? Nesse caso, onde estão nossos futuros ambientalistas, geógrafos, operadores de direitos, aprendizes da arte de abordar o sofrimento psíquico, e tantos outros saberes afins? Calar-se diante da morte civil de pessoas em sofrimento psíquico é tão grave quanto silenciar sobre as agressões ambientais que a cidade de Manaus vem sofrendo. É isso aí!

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Memórias do hospício (IX)

A institucionalização e a opressão psiquiátrica convencional vêm sendo enfrentada pela Reforma Psiquiátrica brasileira, entre outros, por um dispositivo reivindicado pelo movimento por uma sociedade sem manicômios: os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT).

Estudos do Ministério da Saúde indicam que as trocas de Secretários de Saúde no país colaboram para a baixa adesão do modelo pelos novos gestores. Numa recorrência cansativa, vive-se a inventar a roda, e serviço que é bom neca de pitibiriba.

No Amazonas, a única profissional que demonstrou habilidade no processo de conversão ao novo modelo – a terapeuta ocupacional Márcia Maria Gomes de Souza – continua sendo ignorada pelo gestor público. Lamentável! A esta altura seu trabalho deve estar descaracterizado, e, pior, sua auto-estima abalada. Há cinco anos o projeto SRT não sai do papel.

Enquanto noutros estados milhares de usuários desinstitucionalizados (que não precisam viver hospitalizados) aguardam pelos SRTs, no Amazonas pouco mais de quarenta pessoas dependem da vontade política do gestor – não há outra expressão possível, já que temos competência comprovada. Márcia é um exemplo.

Márcia saiu dignamente de um episódio obscuro: um projeto pretendia construir SRTs na área que restou da invasão em terras do Hospital Psiquiátrico, nos meados dos anos 1990. Não era sua praia. Diante de idéia tão estapafúrdia, logo se vê que a conversão aos valores antimanicomiais ainda não foi atingida plenamente.

Esse episódio lembra outro: o da tentativa de criar, açodadamente, no Conjunto Habitacional Nova Cidade os SRTs. Deixou-se de atentar aos princípios que norteiam a implantação de tão nobre dispositivo: a inexistência naquele território de serviços comunitários de programas de suporte à reinserção social. Certamente um anti-prêmio concedido para quem teve sua cidadania ultrajada por anos de exclusão social. O governo da época não embarcou nesse arremedo de ação social.

A dívida social, entretanto, permanece.

Manaus, Janeiro de 2009.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com

Nota do blog: Artigo publicado no Caderno Raio-X, do jornal Amazonas em Tempo.

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