PICICA: "Quando alguns grupos arvoram-se opinião pública, isto significa que seus donos e editores opinam em nome do público. Esses grupos invocam uma liberdade de expressão que inexiste neles mesmos, à medida que seus jornalistas não podem opinar em contrariedade ao veículo. Recalcam a história da grande imprensa brasileira, construída por um amálgama de interesses: estado autoritário, oligarquia familiar e recursos públicos. Nisso, a TV aberta é corrupta até o osso."
Corrupção é sempre da democracia.
De generatione et corruptione, Aristóteles, ilustração na edição de 1535
Desde
Catão e Savonarola, passando por Carlos Lacerda e Fernando Collor, o
combate à corrupção permeia o debate político. Matéria fácil de encaixar
no noticiário, nela a imprensa se esbalda diariamente. Acusações,
denúncias, investigações, o discurso anticorrupção toma conta dos
debates, e não somente nas eleições.
Vários
políticos e jornalistas se credenciam como especialistas em moral, e
fazem disso a sua carreira justiceira. Invocam uma superioridade de
princípios, usufruem de espaço na mídia comparsa e vociferam às
cuspidelas contra seus opositores. Discurso manjado, mas recorrente.
Enquanto isso, acadêmicos advertem da crise dos valores, da era do
relativismo, da degradação moral da geração, do século, da humanidade.
Eis os novos Platões do bairro.
Na história do Brasil, existe até um ismo. Udenismo,
derivado da antiga União Democrática Nacional (UDN). Partido de
extração da classe-média branca, diplomada e urbana, atuou entre 1945 e
1965, com a mais histérica campanha de moralização que já se viu. Sua
força amplificou-se na virtuose retórica de Carlos Lacerda e o jornal
por ele editado, a Tribuna da Imprensa.
Trocando
por miúdos essa retórica: todos os políticos eram corruptos, menos os
udenistas, que modernizariam o estado com valores sacrossantos. O “nós”
se distingue do “eles” como a pureza da corrupção, o bem do mal. Como
todo moralismo, não assume propostas claras e se limita a auscultar
ideais vagos, num tom religioso.
Lacerda
foi o governador da Guanabara de 1960 a 65. Uma vez no poder, como de
hábito, a imaculada concepção exibe as suas origens pudendas. A UDN
ajudou a desestabilizar o regime democrático e respaldou o golpe
cívico-militar de 1964. Só que a primeira pedra voltou mais pesada e
Lacerda logo foi cassado, censurado e isolado da política pelos novos
dirigentes pretorianos.
Desde então, chama-se udenismo toda campanha midiática que promova contextos de caça-às-bruxas. Udenista é a gralha, ave de mau agouro, que prenuncia o golpe.
***
No romance 1984, de Orwell, os personagens Julia e Winston enfim conseguem se encontrar a sós, longe dos olhos do Big Brother. A escapada romântica do casal de traidores do Partido se dá num bosque longínquo. Winston trabalhava no Ministério da Verdade e Julia era militante da Liga Anti-Sexo. Numa
sociedade distópica onde o desejo era criminalizado e tido por
repulsivo (mesmo no casamento), o sexo fazia deles parceiros no crime e
no amor. Nessa passagem do livro, logo após se despirem, os amantes
trocam juras de amor:
“(…) Winston se ajoelhou diante dela, tomando suas mãos.
— Você já fez antes?
— Claro. Centenas de vezes.
— Com membros do Partido?
— Sim, sempre com membros do Partido.
— Com membros da cúpula do Partido?
— Com
esses porcos, não. Mas lá muitos fariam, se tivessem chance. Eles não
são tão santos quanto parecem. — O coração de Winston veio à boca.
Montes de vezes ela provocou isso. E ele desejava que tivessem sido
centenas, milhares de vezes. Qualquer coisa que lembrasse corrupção
sempre o enchia de uma esperança louca. Quem sabe o Partido esteja podre
debaixo da superfície, talvez o culto à autoprivação simplesmente
camufle sua iniquidade. Se ele pudesse ter infectado vários deles com
lepra ou sífilis, quão feliz teria se sentido por isso! Qualquer coisa
que faça apodrecer, enfraquecer, desmantelar! Winston puxou Júlia para
baixo, os dois estavam agora ajoelhados, frente a frente.
— Ouça. Quanto mais homens você teve, mais eu amo você. Você entende isso?
— Sim, perfeitamente.
— Eu
odeio a pureza, odeio a bondade! não quero que a virtude exista em lugar
algum! eu quero que todos sejam corruptos até o osso.
— Muito bem, então eu devo servir a seu gosto, meu querido. Sou corrupta até o osso.
— Você gosta de fazer? Não falo simplesmente de mim: quero dizer, da coisa em si?
— Adoro. — Era isso que ele queria ouvir acima de tudo. Não meramente o amor por uma pessoa, mas o instinto animal, o desejo simples e bruto. Essa era a força que rasgaria o Partido em pedaços.”
***
Na imprensa, o discurso da corrupção se apresenta como um problema individual. Isto é, um indivíduo corrupto
exerce o cargo ou autoridade em benefício próprio. Corrompe-se ao
desviar recursos para si, ao advogar em causa própria. Iníquo, frustra a
finalidade impessoal do estado e macula a cândida moral de servidor.
O
discurso da corrupção vende-se casado com o da impunidade. O país é
corrupto porque os corruptos não são punidos. Ao contrário, aqui são
incentivados, pois quase tudo acaba em pizza. Falta fiscalização, há
leniência de superiores, a justiça é morosa, prevalece uma cultura
endêmica de propina e jeitinho. E então a conclusão: se faz necessária
uma imprensa atuante, livre e independente, para fiscalizar o poder
público como último guardião da moralidade.
Esta é
uma concepção simplória de corrupção, que serve somente ao udenismo,
aos privilégios do jornalismo conservador, às vivandeiras da decência e
dos bons costumes. Status quo.
Fantasmagórica democracia, embute a premissa que o sistema
político-econômico, como um todo, não seja corrupto. Que a corrupção tem
qualidade acidental: simples mau-funcionamento de uma máquina impessoal
e essencialmente neutra. Que ao se punirem e exonerarem alguns agentes e
suas corruptelas, o sistema passaria a funcionar segundo a vontade
abstrata da lei. Que a corrupção combate-se eliminando frutos podres
(mas mantendo a árvore que os produz). Que a crise dos valores nasça da
cobiça no mundo, da decadência do ser humano, de um pecado irreprimível.
O
moralismo petulante e autoritário, udenista e golpista, contorna a
questão central: menos a corrupção de certos valores, do que o valor
desses valores. Na materialidade, esses valores constituem eles mesmos a crise. Antonio Negri e Michael Hardt, em Império,
tecem uma das mais originais reflexões sobre a geração e a corrupção,
do ponto de vista político. Para eles, a corrupção está em toda parte. A
corrupção reside na matéria em que incide o poder. Não há crise de
valores a solucionar no capitalismo, a crise se chama capitalismo.
Corrupção na exploração do trabalho. Uma
equação onde os ganhos se concentram e as perdas se disseminam. O
sistema se corrompe quando os lucros são privatizados e a crise
socializada. Isso não passa por fora do estado. Nem se explica por
alguma invasão do interesse privado no público, mas sim como o liame
interno que os cimenta. Ante as recessões, os governos são os primeiros a
baixar pacotes de austeridade, ao mesmo tempo que subsidiam bancos e
grandes negócios. As especulações financeiras comandam a política
monetária/econômica dos governos, e por ela são comandadas.
Mais
do que funcionamento excepcional, desvela-se aí como o estado funciona
no dia a dia, como unha-e-carne do mercado (a gerência da escassez) —
quer no capitalismo liberal, quer no de estado (socialismo real). Não há
mercado sem estado, nem estado sem mercado.
Corrupção no controle dos meios de comunicação.
Quando alguns grupos arvoram-se opinião pública, isto significa que
seus donos e editores opinam em nome do público. Esses grupos invocam
uma liberdade de expressão que inexiste neles mesmos, à medida que seus
jornalistas não podem opinar em contrariedade ao veículo. Recalcam a
história da grande imprensa brasileira, construída por um amálgama de
interesses: estado autoritário, oligarquia familiar e recursos públicos.
Nisso, a TV aberta é corrupta até o osso.
Por
outro lado, o combate à corrupção não passa pela constituição de uma
mídia “estatal” à altura da “privada”, portentosa e unificada, o que
conduziria ao vício simétrico. Seria chegar no mesmo lugar caminhando
pelo outro lado. Passa, sim, pela constituição de todos os cidadãos
como mídia. Contudo, enquanto as lutas não realizam a democracia, se é
obrigado a engolir os mais corrompidos clamarem pelo fim da corrupção.
Corrupção na lógica da representação. Governar não prescinde de acordos e ajustes dos mais “flexíveis”. O mecanismo eleitoral depende do caixa dois. Há
profundas conexões entre meios de comunicação e parlamentares. Partidos
se enraizam fisiologicamente e operam como aparelhos vazios de
expropriação da voz dos muitos. Todo o sistema representativo apodrece
desde a raiz, menos pela ganância de indivíduos, do que pelo seu
funcionamento íntimo, como conchavo, segredo e negociata. Novamente, não
se trata de contaminação do público pelo privado, mas duas faces da
mesma moeda furada, chamada capitalismo.
Portanto, a corrupção não é doença a curar-se no capitalismo, mas a sua condição primeira. Corrupção é sempre da democracia — enquanto trabalho livre dos muitos, enquanto encarnação da liberdade e do desejo no corpo político dos cidadãos. Democracia
e capitalismo relacionam-se como geração e corrupção da vida, como
potência imanente e sua expropriação pelo poder, respectivamente.
Combater
a corrupção só pode acontecer contra o capitalismo e além dele, para
desmontar suas engrenagens e partilhar um novo mundo. E não ao melhorar o
seu funcionamento, retificando os “comportamentos desviantes”, como de
Winston e Julia.
O capitalismo é a corrupção sistematizada.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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