maio 23, 2012

"Ambiguidades da França ocupada", por Gustavo Alonso

PICICA: "O autor usa como objeto de análise a intensa vida cultural de Paris durante a ocupação nazista para mostrar que nem todos ficaram insatisfeitos com aquele período. Pelo contrário, Riding mostra uma rica vida cultural, com cinemas lotados, cafés repletos de vida, encontros literários intensos, peças escritas e encenadas, pintores e escultores trabalhando, etc. Alguns flanavam para além dos debates políticos do momento, outros simplesmente lucravam de alguma forma com as políticas nazistas que estiveram longe de solapar a vida cultural da Cidade Luz, mas a incitaram e valorizaram em medida bastante razoável."

Ambiguidades da França ocupada

Como divulgador de uma revisão histórica, o livro de Alan Riding tem publico garantido.

por Gustavo Alonso (22/05/2012) 
 

"Paris - a festa continuou: A vida cultural durante a ocupação nazista (1940-4)", de Alan Riding

Como foi viver sob a ocupação nazista? O que significou para diversas populações europeias estar sob o jugo da suástica? Depois de viver períodos históricos considerados a posteriori como “negros”, não é incomum que muitas sociedades prefiram o silêncio acerca do passado. Trata-se de uma forma omissa de lidar com a própria história. Mas o silêncio não é a única forma de lidar com o passado. É igualmente comum que as sociedades venham a louvar uma suposta resistência que teriam oferecido às forças invasoras. É o caso, por exemplo, da França durante a ocupação nazista entre 1940 e 1944.
Este é o objeto do novo livro de Alan Riding, Paris – a festa continuou, lançado mês passado pela Companhia das Letras. Riding é jornalista nascido no Brasil, filho de pais britânicos, e foi correspondente internacional na América Latina e na Europa ao longo de várias décadas.


Durante muito tempo (pelo menos até os anos 70) grande parte da sociedade francesa preferiu adubar a imagem de que teria completa e integralmente resistido aos malefícios da ocupação alemã. Os franceses preferiram se ver como bravos lutadores da resistência, imagem essa que, apesar de ter gerado ganhos políticos ao general De Gaulle no pós-guerra (que chegou a presidente anos mais tarde e teve grande influência política até sua morte), não se explica somente por isso. A louvação da resistência estava diretamente associada ao desejo francês de sublimar aquele período “negro” de sua história. Contrariando esta memória auto-louvatória da sociedade francesa, Alan Riding mostra que as coisas não era assim tão “preto no branco”.


O autor usa como objeto de análise a intensa vida cultural de Paris durante a ocupação nazista para mostrar que nem todos ficaram insatisfeitos com aquele período. Pelo contrário, Riding mostra uma rica vida cultural, com cinemas lotados, cafés repletos de vida, encontros literários intensos, peças escritas e encenadas, pintores e escultores trabalhando, etc. Alguns flanavam para além dos debates políticos do momento, outros simplesmente lucravam de alguma forma com as políticas nazistas que estiveram longe de solapar a vida cultural da Cidade Luz, mas a incitaram e valorizaram em medida bastante razoável.
Os exemplos estão no livro, vale conferir. Sartre escreveu uma de suas principais peças, As moscas (1943), durante a ocupação, assim como seu principal tratado filosófico, o turning-point de uma geração, o famosíssimo O ser e o nada (1943). Os nazistas parecem não ter importunado Sartre a ponto de dificultar seu sucesso como escritor de peças e filósofo. Gente como François Mauriac, ganhador do prêmio Nobel de Literatura, chegou a ter certo agrado do Marechal Petáin, chefe do Estado de Vichy e simpático aos ideais fascistas. Cantores como Maurice Chevalier, Tino Rossi, Charles Trenet e Édit Piaf chegaram a visitar a Alemanha durante a guerra. Depois do armistício, Chevalier chegou a ficar escondido da resistência, por medo de ser punido por seus posicionamentos dúbios.


A imprensa francesa rapidamente se submeteu aos alemães ocupadores, menos por pressão invasora (embora também por esta) e mais por conivência, parcimônia e sintonia com a política nazista, além de um certo fastio e desgosto com o jogo político francês no pré-guerra. Não apenas no território ocupado houve conivência e assíduas relações entre franceses e alemães. A intensa vida cultural de Vichy, onde cerca de 220 filmes foram lançados, vistos e adorados por multidões de ávidos espectadores, demonstra que grande parte da sociedade viveu aquele momento menos como um período de resistência e mais como um período de negociação e júbilo e, eventualmente, alguns possíveis atos de resistência, sempre pontuais e que raramente se sustentaram ao longo do tempo de forma consistente.


Então como explicar a intensa vida cultural parisiense durante a guerra? Para isso Alan Riding se encarregou de escapar das dicotomias frequentemente difundidas na memória coletiva de que ou se resite a um regime ou se é cooptado por este, não havendo meios termos. O autor mostra que o mais comum foram as posições cambiantes, as mudanças de lado, os posicionamentos ambíguos. A vida fluida e as associações instáveis foram mais a regra comportamental dos intelectuais e franceses do que a memória da resistência gosta de lembrar. Constrói-se na obra de Riding uma França menos heroica, mas ao mesmo tempo mais real e complexa.


-- O autor --

Para além de apontar o dedo para o adesismo e conivência de grande parte da sociedade, algo bastante tentador aos patrulheiros de plantão, Riding consegue fugir às dicotomias simplificadoras. Ele busca compreender a construção histórica da memória da resistência, sem com isso louvá-la. Houve aí uma comunhão entre gaullistas de última hora, em seus interesses de manter o poder afastado dos populares comunistas e revanchistas ao final da guerra. Houve também o interesse de largas parcelas da sociedade de colocar para debaixo do tapete o período em que foram coniventes ou até lucraram com a parcimônia e sintonia com os nazistas.


Mas sobretudo, mostra Riding, a construção da ideia de resistência foi essencial para a manutenção de um status quo muito importante na França pelo menos até a década de 70: a posição do intellectuel engagé. Trata-se daquele intelectual que serve de farol para determinada parcela da sociedade, um sujeito capaz de interagir com as multidões e os acontecimentos políticos de cada momento, oferecendo explicações e respostas para cada dilema histórico. Talvez o símbolo maior deste tipo de intelectual tenha sido Jean-Paul Sartre, mas a história da França está repleta deles no século XX, de Camus a Godard, de Althusser a Debord, isso sem contar os diversos artistas estrangeiros que em Paris viveram, como Dali, Mondrian e Picasso. Todos eles, militantes explícitos ou não, partilham do lugar do artista na França: um status simbólico caro à identidade coletiva daquele país.


Há, no entanto, de se demarcar alguns pontos acerca de Paris – a festa continuou. A obra não é propriamente inovadora. A problematização da resistência já vem sendo abordada há algum tempo, sobretudo no cinema — Le chagrin et la pitié, de Marcel Ophüls, Lacombe Lucien, de Louis Malle, e o relativamente recente Monsieur Batignole (lançado no Brasil como Herói por acaso), de Gérard Jugnot, 2002. Há também uma longa historiografia que desde meados dos anos 70 tenta rever o papel da resistência francesa. Uma das primeiras obras foi a de Robert O. Paxton, Vichy France: Old guard and new order (1940-1944), como corretamente aponta Riding. Mas há uma série de outros livros não mencionados ou problematizados pelo autor que talvez rendessem uma discussão interessante. Alguns deles são: La Résistance française: Une histoire périlleuse, de Laurent Douzou, e os livros de Pierre Laborie, sobretudo L´opinion française sous Vichy: Les français et la crise d´identité nationale (1936-1944) e Les français des années troubles: De la guerre d´Espagne à la Libération. Estes livros, dentre alguns outros já consolidados na historiografia francesa, dariam uma boa discussão e talvez mais fôlego conceitual a Riding, que optou por ignorá-los.


De qualquer forma a obra tem a qualidade de, numa linguagem fácil e acessível, atingir um amplo público que crescentemente se interessa por história. Didático, direto e objetivo, ela consegue, com pouquíssimos deslizes, não perder a sutileza das cambiantes posições de seus personagens. Não é algo fácil. De forma que, se o livro não é propriamente uma revolução historiográfica, consegue ser um excelente divulgador da renovação historiográfica ocorrida na França desde os anos 70.


Talvez após a leitura de Paris – a festa continuou o eventual turista da Cidade Luz entenda melhor por que em Paris quase todas as placas em homenagem à resistência louvam os embates que datam de maio a agosto de 1944, às vésperas da expulsão dos nazistas. A sociedade francesa só se levantou contra os invasores quando seu fim já era dado como certo, sobretudo após o desembarque das tropas aliadas no famoso Dia D ocorrido em 6 de junho daquele ano. Riding explica como e por que a ocupação seduziu a tantos. Isso muito se deve ao fato de que esta não foi apenas brutal, violenta e repressiva, mas conseguiu angariar apoios e estimular aspectos culturais vistos como legítimos por esta mesma sociedade ocupada. Fugindo das dicotomias, Alan Riding escreveu uma interessante obra para se pensar não apenas o caso francês, mas as relações ambíguas entre sociedades e regimes autoritários.

::: Paris – A festa continuou ::: Alan Riding (trad. Celso Nogueira e Rejane Rubino) :::
::: Companhia das Letras, 2012, 448 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::

Gustavo Alonso


Mestre em História pela UFF. Na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), estudou sociedades civis e regimes autoritários em Brasil, França e Alemanha. É autor da biografia Simonal: Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga, lançada em 2011.

 Fonte: Amálgama

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