PICICA: "Se não entenderam até agora, não vão entender nunca. O padeiro não
fabrica pães pelo bem da humanidade. Vejo no outro as mãos, a pele, a
dor, a loucura, a terra, a Lua, (e mesmo um quê de imortalidade), porém
não posso nele enxergar a imagem e semelhança do humano. Do outro, quero
a terra que levarei para o meu jardim secreto, um mundo delirante onde a
única substância é o absurdo. A misantropia é condição do amor, esta
afecção da imaginação, atividade imaginadora em que o outro se cria. E
se cria numa imagem onde não me reconheço mais. Sem entrar nos jogos
pautados pelos “resultados”, cujo nojo é preciso provar até o fim para
dele se libertar, imunizado da doença infantil que acomete os humanos.
Tenho o direito à misantropia."
O personagem misantropo
“Lembro-me de uma época em que soltava invectivas incendiárias menos pelo gosto de escandalizar do que por necessidade de escapar a uma febre que, sem o exutório da demência verbal, teria me consumido.” – Emil Cioran
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Admito: existe um misantropo em mim. Senta-se no fundo do palco. Basta prestar atenção para encontrá-lo sempre no mesmo lugar, com seus cabelos brancos, calmamente alternando goladas de cachaça e cigarros Derby. Quase de bastidor, contempla o barulho e a fúria do movimento da vida em que os outros se engajam. Embriagados de urgências e afazeres, os outros personagens passam pelo misantropo como se ele não existisse. Não têm tempo pra isso.
Mal sabem eles que, na noite da noite, quando todos estão esgotados e uma modorra se instaura no palco, o sujeito vem à frente. Nessas raras ocasiões, se pudéssemos nos esconder entre as cadeiras do teatro vazio, talvez teríamos a sorte de ouvi-lo. E ele diz:
Até quando essas disputas de verdades? Daqueles que se gabam delas possuir, e que por elas guerreiam como ícones sagrados? Agitam-se, esbarram-se, despeitam-se, atacam-se, e vão arrebatando-se de fanatismos, uns depois dos outros, uma sucessão de vinganças e ofensivas. Alguns afogam-se em rancores e invejas, outros navegam sobre eles na direção dos ventos, em qualquer caso sufocando a inteligência de vaidades, orgulhos e artigos de fé; — e para quê? Obcecaram pelo real, pelo imperativo de que algo de real definitivamente aconteça consigo, algo que verdadeiramente valha a pena. Estão cansados de esperar a sua vez, que parece jamais vir. A ponto de degustar até o desastre e a desgraça, saborear qualquer situação excepcional, mesmo que negativa, humilhante; o que consterna o rosto e pontua a fala de exasperações e demandas imediatas, e tudo isso os preenche de algum sentido.
Obstinaram-se em viver seu tempo histórico, o coração armado, a mente tensa, e todos os momentos modulados à máxima concentração de forças. Inconfessadamente, querem que a existência os faça doer e ranger, para provar acima do benefício da dúvida de que estão vivos, sim, vivos aqui e agora. Os mortos não caminham conosco: nós caminhamos ao Sol! Essa certeza vital os restitui o ímpeto a cada manhã, mesmo depois das piores noites. E respiram fundo esse ar vicioso, carregado de humores venenosos. Odeiam com mais intensidade do que amam. E quando amam, amam a falsa imagem que fazem de si mesmos. Seus ódios tragam a parcimônia, deixam-se tomar por um furor que neles causa motivação e até alegria. Pretendem explorar paisagens inverossímeis, assediar os castelos da tradição, devorar os ídolos de outras gerações, sem qualquer condescendência com quem quer que seja.
Meus contemporâneos batalham pelo futuro da humanidade. E eu lá tenho, ou alguma vez tive algum compromisso com a humanidade? desde quando? mas que me importa a humanidade? que importa essa mística, o velho erro e todas as cândidas intenções humanistas? Se dizem que vai acabar, me traz a sensação de alento, porque o humano nunca se colocou como ômega universal. Não sou atravessado pela humanidade, não é a minha condição. Chega desse clima de idade média, simpatia pelo inferno e gozo secreto ante as visões de fim de mundo. Escatologia de condomínio fechado, paranoia de rico, humanismo que lubrifica a máquina de torturas da Colônia Penal (menos rangidos! menos gritos!) O enfrentamento é viver e não aspira ao conforto de shopping center nem aos idílios plastificados e prazeres customizados da geração.
Se não entenderam até agora, não vão entender nunca. O padeiro não fabrica pães pelo bem da humanidade. Vejo no outro as mãos, a pele, a dor, a loucura, a terra, a Lua, (e mesmo um quê de imortalidade), porém não posso nele enxergar a imagem e semelhança do humano. Do outro, quero a terra que levarei para o meu jardim secreto, um mundo delirante onde a única substância é o absurdo. A misantropia é condição do amor, esta afecção da imaginação, atividade imaginadora em que o outro se cria. E se cria numa imagem onde não me reconheço mais. Sem entrar nos jogos pautados pelos “resultados”, cujo nojo é preciso provar até o fim para dele se libertar, imunizado da doença infantil que acomete os humanos. Tenho o direito à misantropia.
E quanto às toupeiras em posições de mando ou status, que se comprazem com as ninharias e nulidades que obtiveram numa vida obesa? Esses não merecem mais do que o desdém. Eles e todos aqueles que os servem voluntariamente, presos em medos, resignações e impotências. Para estes, só há uma via para existir: revoltar-se. Mas odiá-los seria superestimá-los. Sentir rancor, divinizá-los. Nada avilta mais à sensibilidade do que o ressentimento diante da imundície deste mundo. Sinto-me absolutamente imune diante das mesquinharias que os fazem acordar cedo e alimentar a Grande Máquina. Uma derrisão sem limite. Se possuo uma vaidade, é do tamanho da mediocridade que encontro no dia a dia, e nada mais. Podem tentar enlamear-me com suas mazelas desinteressantes e conquistas ridículas, incitar-me ao remorso, à ferida moral, ao derrotismo romântico, mas ressurgirei intocado. Suas taras não me interessam. Fugirei para grandes espaços arejados, para o extremo sul do Brasil, e lá me confinarei em mim mesmo, sonhador de todos os mundos, na lembrança incandescente de ternuras e barricadas, nos horizontes infinitos dos pampas. Munido da grande ironia, renascerei intocado da vulgaridade.
O mestre romeno tem razão, às pessoas falta a qualidade da deliquescência. É preciso aplicar na humanidade a fórmula do solvente universal.
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À Maria Ivonilda, do blogue Ademonista.
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