PICICA: Divido com meu leitores esse achado arqueológico virtual. Trata-se de um texto da nossa querida Ana Marta Lobosque, psiquiatra, psicanalista e doutora em Filosofia, em que ela desmonta a instituição manicomial e a instituição psiquiátrica (ambas não vivem uma sem a outra), criticando àquela época a instituição histórica da internação compulsória. Leia também a 'critica' ao texto dessa militante antimancomial por um conhecido pena de aluguel refratário à produção de novos saberes e da renovação do conhecimento, que na pia batismal recebeu o nome de Reinado Azevedo. Clique aqui para ler a indigitada criatura. Abaixo o texto de Ana Marta.
Luta Antimanicomial: Podres poderes - A razão do mais forte
Teoria e Debate nº 15 - agosto/setembro/outubro de 1991
publicado em 13/04/2006
O fim dos manicômios é, acima de tudo, uma exigência de cidadania. A recusa de questionamento por alguns psiquiatras revela a má-fé de uma corporação que não quer perder seus privilégios.
por Ana Marta Lobosque*
A desinstitucionalização é a transformação das relações reificadas de poder, nós pensamos que a loucura tem muito a ver com isso; não apenas a que está dentro dos manicômios, mas a que está fora também, a loucura é a expressão de uma relação de poder errada, que não consegue se desenvolver nem se modificar.
(Franco Rotelli, psiquiatra diretor do Serviço de Saúde Mental de Trieste. Itália).
(Franco Rotelli, psiquiatra diretor do Serviço de Saúde Mental de Trieste. Itália).
A instituição manicomial tem sido questionada pela sociedade brasileira. Atos de grande importância neste sentido têm sido sustentados pelo PT: a intervenção da prefeitura de Santos num grande hospital psiquiátrico, por exemplo, e, mais recentemente, o projeto de lei do deputado federal Paulo Delgado (PTMG) que institui a progressiva desospitalização no tratamento das doenças mentais no país. A participação da sociedade civil nesse questionamento é essencial; daí nosso interesse em intervir no debate.
De início uma observação: questionar a instituição manicomial é questionar também a instituição psiquiátrica. Cronologicamente, os manicômios como recurso da sociedade para lidar com a loucura, separando os loucos dos outros cidadãos e internando-os, são anteriores à psiquiatria. O asilo de loucos surgiu antes da psiquiatria, e sem ele não haveria a psiquiatria tal como a conhecemos hoje. A expressão instituição psiquiátrica merece, aliás, um exame mais detido.
Tomemos como exemplo a prática social da Medicina. Ela inclui evidentemente aspectos técnicos - conhecimento sobre a constituição do corpo, seu funcionamento, distúrbios etc. Mas quando falamos da instituição médica, estamos nos referindo, principalmente, às regras que definem as relações dos médicos entre si e com o conjunto da sociedade.
O mesmo se pode dizer com relação à instituição policial: há um nível técnico que consiste em conhecer, por exemplo, o manejo de um revólver e um nível institucional que consiste em definir em nome de que há de se fazer uso do mesmo revólver; ou seja, em que circunstâncias se justifica o uso "em nome da lei". A polícia está autorizada a usar armas para proteger a sociedade de indivíduos ou grupos que querem se impor à força - e muitas vezes acaba por colocar a força, que lhe foi delegada por todos, a serviço de alguns. Cabe à sociedade como um todo o espinhoso problema da regulamentação do uso da força, a saber: como fazer valer a prioridade da razão com relação à força, uma vez que a posse da força permite ignorar a razão? Como limitar o uso da força de acordo com a razão?
Não foi gratuitamente que utilizei até aqui o exemplo da polícia: pretendo me referir, em se tratando dos impasses entre razão e força, ao parentesco existente entre instituição psiquiátrica e instituição policial.
Nós, psiquiatras, não gostamos de assumir este parentesco com a instituição policial; preferimos insistir em parentescos mais nobres como, por exemplo, com a Medicina. O fato é que entre as instituições médica, policial e psiquiátrica pode haver diferenças de status, mas não, diferenças éticas essenciais. Nesse aspecto, todas são produto da organização social em que se inserem e refletem a maior ou menor incidência da lei nessa organização.
O parentesco entre psiquiatria e polícia se dá pelo compromisso de ambas com a manutenção da ordem social; a psiquiatria interna os doidos que perturbam a ordem, como a polícia prende os assaltantes. Por isso mesmo, ambas correm o mesmo e enorme risco de confundir a noção genérica de ordem social com a concretude da ordem vigente, isto é, com uma determinada ordem social. Mais ainda: os psiquiatras, assim como a polícia, chegam a ter interesse em que a sociedade congele uma determinada correlação de forças e para isso alguns chegam a abusar da arma que têm na mão. Assim como a sociedade outorga à polícia o porte de armas para exercer a sua função, ela nos outorga, aos psiquiatras, o manejo da internação compulsória: o poder do psiquiatra de internar à revelia, o dito louco.
O projeto de lei do deputado Paulo Delgado, que determina o fim da instituição manicomial como tal, refere-se a tal arma, quando fala em poder de seqüestro dos psiquiatras.
Alguns psiquiatras disseram-se magoados por terem sido chamados de sequestradores. É bom, então, esclarecer o que significa poder de seqüestro: ele se revela no exame das condições necessárias para se internar um cidadão num manicômio, de acordo com a legislação vigente no Brasil desde 1934. É preciso, apenas, que alguém da família do dito louco ou da comunidade solicite sua internação em uma instituição e que um psiquiatra, a ela ligado, assine abaixo. Mais nada. Se houver acordo entre o demandante da internação e o psiquiatra, a "vítima" pode gritar, espernear, afirmar que não é louca - tendo ou não razão, é internada assim mesmo,
Qual a participação técnica do psiquiatra, e do seu saber sobre a loucura na decisão da internação compulsória? Evidentemente há um saber psiquiátrico sobre a loucura. Uma avaliação efetiva deste saber, de sua construturação e de seus impasses seria matéria para um outro artigo. Aqui, queremos assinalar que não foi preciso esperar pela constituição deste saber, que é relativamente recente, para determinar quem são os loucos - a sociedade sempre soube identificá-los muito bem. O manicômio, a Casa dos Loucos, já estava construído e habitado, quando nós psiquiatras assumimos a designação de governá-lo.
Assim, o que se espera da psiquiatria não é que ela diga quem são os loucos - isto sempre se soube. O que se deve exigir da psiquiatria é que ela formule com mais clareza a questão entre loucura e liberdade: como se explica que o louco não possa ser livre para dispor de si? Cabe aos psiquiatras um trabalho teórico que permita avançar nessa questão - que permita fundamentar, racionalmente, a decisão de internarmos os loucos contra a vontade deles; que nos permita, nesse ato, subordinarmos a força à razão.
Entretanto, a experiência de trato com os loucos nos permite algumas afirmações. A começar pela eventual necessidade de internação compulsória: existem casos, momentos e situações em que não há alternativa senão internar à força, medicar à força, porque ultrapassam concretamente o limite da possibilidade de convívio social e constituem um risco para a sobrevivência do sujeito. Mas podemos também afirmar que tal impossibilidade é sempre transitória e que a internação compulsória deve ser considerada e manejada como medida de exceção, revista no mais curto período de tempo possível; e que o prolongamento dessa internação não se justifica por supostos benefícios terapêuticas. Podemos afirmar que é sempre possível restituir o louco à condição de cidadão e ao convívio com outros cidadãos.
Para melhor definir as possibilidades deste convívio, voltemos a tratar de instituições e leis. Se toda instituição é regida por regras sociais, seu funcionamento pode e deve ser questionado pela sociedade. A recusa de questionamento por alguns psiquiatras revela a má-fé de uma corporação que não quer perder seus privilégios. Já é tempo de aprendermos a deliberar acerca de questões institucionais. A maior parte das críticas de psiquiatras ao projeto de lei do deputado Paulo Delgado, por exemplo, não vem acompanhada de propostas concretas, de emendas ao projeto. Assim, o que parece incomodar é a própria existência de um projeto de lei na área, ou seja, o fato de determinados setores da sociedade civil, através de um representante parlamentar, procurarem colocar um limite legal no poder até então concedido a uma corporação. É preciso saber que todo tecnicismo esconde má-fé e não se deixar intimidar pelo "discurso da.competência" técnica.
Também é tempo de percebermos que as regras determinantes de um funcionamento institucional não são produto de consenso entre as partes - elas resultam de conflito entre posições diferentes. Instituir a democracia é criar condições para que os conflitos não se resolvam na base da briga de foice; é criar uma forma de convivência social, dada pela submissão da força à razão - e, com certeza, a negação do conflito, a negação das diferenças, não é a solução que buscamos.
Para concluir, é importante mencionar que além do conflito entre razão e força existe, na questão manicomial, o conflito que parece opor razão e loucura. No caso razão versus força, vale observar que não são pólos opostos de um conflito; são, sim, terrenos distintos, onde ocorrem distintas soluções - a da palavra e a da porrada. Já os conflitos entre razão e loucura, que embora possam ser, em última instância, resolvidos à força, têm no interior do discurso, seu terreno decisivo; cada vez mais, é no interior do discurso que se procura forçar a razão - e os loucos têm sofrido, na carne, as conseqüências disso. Como pensar, sem forçar a barra, o tipo de impasse que a loucura cria para o exercício da razão? Como reconhecer que as razões ocultas no discurso do louco concertem às questões da liberdade para todos nós?
Ao menos, não nos esqueçamos: loucos e não-loucos, partilhamos todos da condição de habitantes de um país, onde a grande maioria da população não tem acesso à arbitragem dos conflitos pela lei. Loucos e não-loucos,'precisamos encontrar recursos para fazer vigorar a cidadania e para questionar a razão daquelas posições que se impõem à força.
* Ana Marta Lobosque é psiquiatra e militante do Movimento Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental.
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