maio 31, 2012

"O segredo sem paredes", por Muniz Sodré

PICICA: Mais um primoroso texto do professor Muniz Sodré, de quem recomendo este pequeno clássico: "A Comunicação do Grotesco".

PRIVACIDADE

O segredo sem paredes

Por Muniz Sodré em 29/05/2012 na edição 696


Numa pequena nota, o colunista Ancelmo Gois, de O Globo, pedia “calma” à cantora que, em depoimento sobre a carreira artística, discorreu sobre, digamos, a sua “umidade íntima”: ao interpretar “Free Again” no Golden Room do Copacabana Palace, arremataria a canção com orgasmos apoteóticos. Já no “Fantástico Show da Vida”, uma famosa apresentadora, também depondo sobre sua intimidade, revelou, às lágrimas, ter sofrido abusos sexuais na infância, o que até hoje a impediria psicologicamente de se casar. Semanas antes, uma conhecida atriz de tevê havia ocupado muito espaço de jornal e muito tempo de televisão com o drama da expropriação cibernética de suas imagens íntimas.


Um ângulo interessante para a observação do jornalismo nesses episódios é a evidência de que eles são tratados como acontecimentos isolados, quando na verdade pertencem a um mesmo fato social. Há uma distinção teórica entre fato e acontecimento. Embora os dois termos possam referir-se a uma experiência sensível, a tradição de pensamento entende fatos como “objetos para conceitos cuja realidade objetiva pode ser provada”.


Estamos aqui tentando resumir uma explanação longa e complicada, mas vale a pena a simplificação para enfatizar que, nas ciências sociais, o mundo dos fatos é um “estado de coisas” – portanto, conexão de coisas – que serve para objetivar conceitualmente a realidade dos fenômenos. O acontecimento, por sua vez, entendido como ocorrência, transformação ou passagem, decorre da realidade factual. O acontecimento, seja grande ou pequeno, se constrói como uma irradiação do fato, e o jornalismo tem a sua maneira particular de construí-lo.


Curso próprio


Os três acontecimentos acima citados pertencem ao fato social da abolição da diferença entre espaço público e privado. Em todo lugar, mas particularmente entre nós, faz muito tempo que o espaço público tem no broadcast televisivo com suas derivações de formas de entretenimento (música, shows etc.) seu ícone principal. Por sua grande capacidade de transpor as velhas barreiras sociais (classe, credo, sexo e idade) e assim constituir audiências diversificadas, a tevê impôs-se como a mídia prototípica do alcance massivo. No passado recente, foram muitas as hipóteses críticas sobre o seu potencial de concorrência, em termos educacionais, com a família e a escola.


Entretanto, menos de três décadas depois do início do império televisivo, a centralidade do broadcast começa a ser alterada pela televisão segmentada, comercialmente programada em função da heterogeneidade das audiências. E ainda na década final do século, a tecnologia digital impulsiona e consolida a fragmentação dos públicos sob a forma de individualidades comunicantes ou interativas. A interação dá lugar à interatividade, que implica um processo gradativo de apropriação da tecnologia da comunicação pelos usuários. A internet sintetiza todas as possibilidades expressivas da mídia anterior (imprensa escrita, rádio e televisão).


O broadcast é, assim, progressivamente substituído pelo pointcast, que é a multiplicação dos pontos de mira individualizados, capazes de provocar a fragmentação do espaço público que tinha sido tecnicamente ampliado pela mídia tradicional. Ao olhar analítico, configura-se uma nova realidade, em que pontificam basicamente desde amplas frações de faixas etárias das classes médias até a juventude das periferias urbanas, aglutinadas por meio de redes alternativas de comunicação baseadas na internet e socialmente extensivas por meio de organizações lúdicas de natureza variada (desde showsmusicais a jogos coletivos).


Não têm mais a mesma configuração os efeitos da grande mídia (jornais, revistas, televisão) sobre esse novo tipo de público. Do ponto de vista técnico e mercadológico, a digitalização e as redes eletrônicas simplesmente acumulam os seus efeitos sobre todas as indústrias de conteúdos (cada uma com a sua história e suas características de mercado), típicas do que se designava como “indústria cultural”.


Do ponto de vista psicossocial, há uma nova forma de vida, em que o menor deslize técnico com os gadgets da moda pode ganhar curso próprio na rede eletrônica. Ou então se intensifica, como estranho atrator, a publicização do eu mais íntimo que, antes reservado às alcovas, ao confessionário ou ao gabinete psicanalítico, agora desabrocha, despudoradamente, em público. Não se pode mais cantar, como a saudosa Dalva de Oliveira, “o peixe é pro fundo das redes/ segredo é pra quatro paredes”.Os “peixões” estão agora na superfície das redes, e os segredos perderam as paredes.


Novo e repetido


O fenômeno é generalizado na rede eletrônica, mas ultrapassa essa esfera e ganha a mídia como um todo quando os personagens dispõem de um grau maior ou menor de celebridade. Há quem seja levado a pensar, inclusive alguns parlamentares e jornalistas, que essa transfusão pública de intimidades e sentimentos contribua para o fortalecimento comunitário. A franqueza e as lágrimas dos que se expõem seriam índices de uma verdade. A esses, conviria ler urgentemente Martin Buber que, já na segunda década do século passado, advertia que “a verdadeira comunidade não nasce do fato de que as pessoas tenham sentimentos para com os outros (embora ela não possa nascer sem isso), mas nasce de duas coisas: de que elas estejam todas em relação viva e recíproca com um centro vivo e de que estejam ligadas umas às outras pelos laços de uma viva reciprocidade” (Eu e Tu, 1923).


O que há mesmo é um novo “estado de coisas”, um novo tipo de fato social em que a vida midiática em toda a sua extensão (da imprensa até a internet) sobredetermina ou preside à eclosão de pequenos acontecimentos “emocionais”, que oscilam entre o insólito e o burlesco. A publicização do íntimo aumenta na razão direta da expansão das redes sociais.


Há cerca de cinco anos, a declaração de uma doméstica na televisão sobre, digamos, sua “umidade íntima” ao escutar uma canção romântica causou verdadeiro espanto público, incentivado pela mídia, no Rio e São Paulo. Agora, ao mesmo tempo em que progride o tabu do “politicamente incorreto”, a revelação do íntimo ganha, sem paradoxo aparente, um curso novo e repetido. Navegando-se nessas águas, é de se esperar uma cascata (ou uma cachoeira?) de similares. Ninguém parece estar a salvo – ou free again – do grotesco.


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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]

Fonte: Observatório da Imprensa

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