PICICA: "Se, conforme dissemos anteriormente, o Sujeito já perde algo de que não possuía, ao fazer o movimento de doar, talvez seja uma forma imaginária de reaver um gozo que ficou refém do Mercado. O crowdfunding torna-se aqui, objeto a. É também, mais-gozar. Em águas passadas já foi objeto causa-do-desejo. A reconquista do que lhe foi tomado na mais-valia volta através do sentimento de "bem-estar" social que o ato de doar traz. Isso nos faz questionar se o bem-estar dito aqui volta-se ao Sujeito ou ao Social? Talvez ambos... O que vai ser tomado enquanto discurso, como conteúdo manifesto, revela algo do Sujeito não necessariamente, revela algo ao sujeito. Dizer que se está doando para ajudar numa causa que acredita, pode ser puramente retórico. Depende de como se fala, mas depende também de como se ouve. O sintoma é este dito sem se dizer. Irônico dizer que o Sujeito possa gozar quando doa algo que não tem, mas não pode gozar do fruto de seu trabalho."
A mais-valia em Marx, o mais-gozar em Lacan e o crowdfunding
Durante uma aula uma colega demonstrou interesse em estudar o movimento crowdfunding (termo usado para as iniciativas de financiamento colaborativas). Só para ilustrar, cita-se o exemplo do filme Just do it que teve o apoio deste tipo de financiamento.
Fiz um comentário contrário ao que vinha sendo discutido, algumas pessoas viam no crowdfunding um movimento de fraternidade, onde o sujeito tem a possibilidadade de ajudar uma causa, ou uma ideia que acha de grande valor social. Bom, assinalei que via no crowdfunding o conceito lacaniano de mais-gozar. Claro, que estas ações podem transformar o mundo, ou ao menos tentar melhorá-lo, mas o fato de serem o conteúdo manifesto, pode ou não, ter a mesma equivalência do conteúdo latente. É o que pretendo discutir, a seguir.
Lacan tira o conceito de mais-gozar a partir da ideia marxista de mais-valia, assim precisamos enteder um pouco de Marx para chegarmos a Lacan.
Importante citar aqui que Lacan lia Marx e passa a inconrporar um pouco do marxismo nos Seminários a partir de 1968 (Livro 16 - De um Outro ao outro e Livro 17 - O avesso da psicanálise). Lembrando que nesta época, mais especificamente em maio de 68, a França vinha sofrendo uma reviravolta através de uma greve geral que acabou sendo considerada como um golpe comunista contra o governo gaullista. Quem quiser saber mais, vale o filme Os sonhadores, de Bernardo Bertolucci, onde conta a história de 3 jovens que veêm a revolução de 68 acontecer pela janela do quarto.
A aproximação de Lacan com Marx é feita por homologia e não por analogia. Marx descreve seu campo enquanto estrutura, principalmente a partir do mercado e de como se situa nele o trabalho: no mercado, o trabalho é comprado como uma mercadoria. Nesse sentido, Lacan vai falar de um novo discurso, o discurso capitalista. O lugar que o trabalho e o mercado assumem neste discurso é o que vai permitir a Marx situar a mais-valia.
Lacan duvida de que a tomada de poder seja capaz de subverter o sujeito capitalista. O que há de estrutural em Marx é este ter percebido que a mais-valia é produto do discurso capitalista, que não é senão a partir desse discurso que se pode determinar seu lugar, sendo ao mesmo tempo produto e causa. A mais-valia põe em funcionamento toda a produção - o sistema capitalista de produção é um sistema de produção de mais-valia.
Vamos considerar o seguinte: mais-valia é o termo usado para designar a disparidade entre o salário pago ao trabalhador e o valor do trabalho produzido. Um bom exemplo, é pensar que um trabalhador leva duas horas para produzir uma peça qualquer. Neste tempo este trabalhador produz o suficiente para pagar todo o seu trabalho, entretanto, ele permanece na empresa produzindo muito mais do que uma peça e vai receber o equivalente à confecção de apenas uma. O custo de cada peça assim como o salário do trabalhador não vão mudar, mas nos faz pensar que este trabalhou algumas horas "de graça", isso faz com que o custo do produto seja reduzido e aumente o lucro para o dono da empresa. Este valor a mais, a mais-valia, é apropriado pelo capitalista e constitui o que Marx chamou de Mais-valia Absoluta. A tecnologia também veio a servir ao mesmo propósito, ampliando a produtividade física do trabalho através da mecanização, surge assim a Mais-valia Relativa.
O estruturalismo em Marx, tal como propõe Lacan, consiste em considerar o mercado como o campo do Outro que totaliza os valores, como o Saber que prescreve os preços e que, como discurso, detém os meios de gozar. Há ainda um correlato do sujeito nesse mercado do Outro, o mais-gozar. Este é um conceito que aparece no Seminário 16 de Lacan, chamado de "de um Outro ao outro", partindo da articulação entre trabalho e renúncia ao gozo. O mais-gozar, enquanto função é um efeito do discurso que o articula, ele demonstra na renúncia ao gozo, um efeito do próprio discurso.
Oliveira (2008) sugere a leitura d'O Capital em paralelo com o texto de Freud, Além do princípio do prazer. "A ideia fundamental é a de que o discurso pressupõe a perda de um objeto que deverá então retornar enquanto objeto a ser recuperado: gozo perdido a ser recuperado como mais-gozar".
Essa leitura nos permite reinterpretar o axioma lacaniano, um significante representa um sujeito junto a outro significante, de outra forma. Um valor de uso, da força de trabalho representa um trabalhador junto ao mercado resultando na mais-valia. Desta forma, representando o trabalhador junto ao mercado, a força de trabalho obtém seu valor de troca enquanto valor de uso. Contudo, nessa troca o trabalhador perde algo que tinha mas não possuía, o único modo de possuí-lo é perdê-lo. Na fórmula lacaniana do discurso do mestre vê-se que na operação de representação de um sujeito junto ao Outro significante, sempre há a produção de uma perda (do objeto a).
Discurso do Mestre (Lacan) Em Marx
valor-de-uso valor-de-troca
S1 S2 (força de trabalho) Mercado (preço)
____ _____ _________________ _______________
$ a trabalhador mais-valia
"Enquanto valor de uso, força de trabalho a ser vendida no mercado, o trabalhador é transformado num valor-de-troca, seu trabalho útil tornando-se trabalho abstrato. Mas, nessa transformação, algo falha, algo não é pago, a algo não é dado um preço: falha do saber, de onde cai a mais-valia." (Oliveira, idem).
Podemos dizer, a partir da constatação de que algo do trabalho não é pago ao trabalhador que, enquanto Sujeito, o gozo que viria daí fica agora refém do Mercado. Isso faz com que o Sujeito, ao perder algo, possa partir para uma reconquista. É justamente esta perda que engendrará o mais-gozar, que volta como sintoma.
Para quem quiser continuar lendo Olivieira a partir daqui, vale a pena acompanhar o autor na transformação do discurso do mestre para o discurso universitário, onde o saber é tomado como S2 e os universitários transformados em mais-valia, sendo a universidade um mercado do saber.
No nosso caso, preferimos avançar conceitualmente sobre o mais-gozar. Em francês, plus-de jour, algumas traduções tratam por mais-de-gozar, entretanto, na língua portuguesa este "de" não altera o sentido da expressão. Interessante ressaltar também que o objeto a é formalizado a partir destes seminários como mais-gozar. Outro ponto trata-se da afirmação de Lacan de que o sintoma não deve mais ser buscado em Hipócrates, mas sim em Marx sobre a ideia de mais-valia. O sujeito liberto do senhor feudal torna-se escravo de sua própria liberdade. O modo no qual cada um "sofre" em sua relação com o gozo, sabendo que este só se insere através do mais-gozar (objeto a), é o sintoma.
Se pensarmor o Sujeito a partir da (di)visão marxista, ou seja, patrão e proletário, devemos imaginar como cada um vai fazer sua participação no crowdfunding e o que isto significa. Quem realmente doa? Lacan, no Seminário 17, propõe o seguinte: "O rico, diz ele, ele compra tudo, em suma - enfim, ele compra muito. Mas queria que vocês meditassem sobre o seguinte - ele não paga." É nítido que o acúmulo da mais-valia ao capitalista faz com que este, ao fazer uso daquilo que outrora fora força-de-trabalho, usa o que excede ao trabalhador. Diminui de seu lucro. Quando o trabalhador doa o que está incutido de seu valor-de-uso, doa algo que já lhe escapa, algo sem preço, apesar de possuir um valor (note-se que são coisas diferentes). Num momento anterior (Seminário 10 - a angústia), Lacan falava que o amor é dar aquilo que não se tem. Nesse sentido, talvez, poderia-se dizer que o sujeito ao doar faça um gesto de amor.
Se, conforme dissemos anteriormente, o Sujeito já perde algo de que não possuía, ao fazer o movimento de doar, talvez seja uma forma imaginária de reaver um gozo que ficou refém do Mercado. O crowdfunding torna-se aqui, objeto a. É também, mais-gozar. Em águas passadas já foi objeto causa-do-desejo. A reconquista do que lhe foi tomado na mais-valia volta através do sentimento de "bem-estar" social que o ato de doar traz. Isso nos faz questionar se o bem-estar dito aqui volta-se ao Sujeito ou ao Social? Talvez ambos... O que vai ser tomado enquanto discurso, como conteúdo manifesto, revela algo do Sujeito não necessariamente, revela algo ao sujeito. Dizer que se está doando para ajudar numa causa que acredita, pode ser puramente retórico. Depende de como se fala, mas depende também de como se ouve. O sintoma é este dito sem se dizer. Irônico dizer que o Sujeito possa gozar quando doa algo que não tem, mas não pode gozar do fruto de seu trabalho.
De um jeito ou de outro, o importante é que não façamos do crowdfunding um movimento de escapismo romântico*. "... E há uma coisa que (o rico) não paga, é o saber." (Lacan, Seminário 17).
* Sobre este conceito, um agradecimento especial aos questionamentos do querido amigo, acaciO.
Referencial:
Lacan. Jacques. O Seminário livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
_____________. O Seminário livro 16, De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
_____________. O Seminário livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zagar Editor.
Oliveira. Cláudio. O chiste, a mais-valia e o mais-de-gozar ou o Capitalismo como uma piada. Disponível emhttp://www.fafich.ufmg.br/estudoslacanianos/pdf/Claudio_Oliveira_artigo_04.pdf. Último acesso em 26 de maio de 2012.
Outros links:
http://www.antroposmoderno.com/antro-articulo.php?id_articulo=511
Podemos dizer, a partir da constatação de que algo do trabalho não é pago ao trabalhador que, enquanto Sujeito, o gozo que viria daí fica agora refém do Mercado. Isso faz com que o Sujeito, ao perder algo, possa partir para uma reconquista. É justamente esta perda que engendrará o mais-gozar, que volta como sintoma.
Para quem quiser continuar lendo Olivieira a partir daqui, vale a pena acompanhar o autor na transformação do discurso do mestre para o discurso universitário, onde o saber é tomado como S2 e os universitários transformados em mais-valia, sendo a universidade um mercado do saber.
No nosso caso, preferimos avançar conceitualmente sobre o mais-gozar. Em francês, plus-de jour, algumas traduções tratam por mais-de-gozar, entretanto, na língua portuguesa este "de" não altera o sentido da expressão. Interessante ressaltar também que o objeto a é formalizado a partir destes seminários como mais-gozar. Outro ponto trata-se da afirmação de Lacan de que o sintoma não deve mais ser buscado em Hipócrates, mas sim em Marx sobre a ideia de mais-valia. O sujeito liberto do senhor feudal torna-se escravo de sua própria liberdade. O modo no qual cada um "sofre" em sua relação com o gozo, sabendo que este só se insere através do mais-gozar (objeto a), é o sintoma.
Se pensarmor o Sujeito a partir da (di)visão marxista, ou seja, patrão e proletário, devemos imaginar como cada um vai fazer sua participação no crowdfunding e o que isto significa. Quem realmente doa? Lacan, no Seminário 17, propõe o seguinte: "O rico, diz ele, ele compra tudo, em suma - enfim, ele compra muito. Mas queria que vocês meditassem sobre o seguinte - ele não paga." É nítido que o acúmulo da mais-valia ao capitalista faz com que este, ao fazer uso daquilo que outrora fora força-de-trabalho, usa o que excede ao trabalhador. Diminui de seu lucro. Quando o trabalhador doa o que está incutido de seu valor-de-uso, doa algo que já lhe escapa, algo sem preço, apesar de possuir um valor (note-se que são coisas diferentes). Num momento anterior (Seminário 10 - a angústia), Lacan falava que o amor é dar aquilo que não se tem. Nesse sentido, talvez, poderia-se dizer que o sujeito ao doar faça um gesto de amor.
Se, conforme dissemos anteriormente, o Sujeito já perde algo de que não possuía, ao fazer o movimento de doar, talvez seja uma forma imaginária de reaver um gozo que ficou refém do Mercado. O crowdfunding torna-se aqui, objeto a. É também, mais-gozar. Em águas passadas já foi objeto causa-do-desejo. A reconquista do que lhe foi tomado na mais-valia volta através do sentimento de "bem-estar" social que o ato de doar traz. Isso nos faz questionar se o bem-estar dito aqui volta-se ao Sujeito ou ao Social? Talvez ambos... O que vai ser tomado enquanto discurso, como conteúdo manifesto, revela algo do Sujeito não necessariamente, revela algo ao sujeito. Dizer que se está doando para ajudar numa causa que acredita, pode ser puramente retórico. Depende de como se fala, mas depende também de como se ouve. O sintoma é este dito sem se dizer. Irônico dizer que o Sujeito possa gozar quando doa algo que não tem, mas não pode gozar do fruto de seu trabalho.
De um jeito ou de outro, o importante é que não façamos do crowdfunding um movimento de escapismo romântico*. "... E há uma coisa que (o rico) não paga, é o saber." (Lacan, Seminário 17).
* Sobre este conceito, um agradecimento especial aos questionamentos do querido amigo, acaciO.
Referencial:
Lacan. Jacques. O Seminário livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
_____________. O Seminário livro 16, De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
_____________. O Seminário livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zagar Editor.
Oliveira. Cláudio. O chiste, a mais-valia e o mais-de-gozar ou o Capitalismo como uma piada. Disponível emhttp://www.fafich.ufmg.br/estudoslacanianos/pdf/Claudio_Oliveira_artigo_04.pdf. Último acesso em 26 de maio de 2012.
Outros links:
http://www.antroposmoderno.com/antro-articulo.php?id_articulo=511
Fonte: Expressão
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