PICICA: "O que me choca até hoje é a covardia coletiva, o
descrédito nas instituições e a falta de confiança da sociedade numa
máquina que existe para proteger os cidadãos de bem, não persegui-los.
Todos sabem que Bianca foi vítima de um crime. Donos, editores,
repórteres e até porteiros dos jornais sabem. Promotores, advogados,
médicos, pacientes, todos sabem. Mas uma realidade sempre pintada sobre
as cercanias das bocas de fumo de periferia, que enfeitam os jornais
populares, a famosa Lei do Silêncio, chegou ao mundo civilizado das
redações, dos escritórios." EM TEMPO: Para entender o caso de assédio moral sofrido pela médica Bianca Abinader, leia A promiscuidade política-justiça no Amazonas
Os três macacos "sábios"
MANAUS É DIFERENTE MESMO, ANÍBAL
Mais do que mostrar, à luz do dia e em praça pública, o que a mistura de bandidos endinheirados e instituições apodrecidas pode fazer à sociedade, o espetáculo grotesco da demissão da Bianca Abinader é importante por outro feito marcante: ter mostrado mais sobre a plateia do que sobre o que ocorria no palco.
Nunca vimos, com tanta riqueza de detalhes, o que o grupo político que domina o Amazonas já fez tantas vezes antes, sempre e sempre com o uso da máquina pública. O escandaloso do caso da Bianca é que o martírio se deu no horário nobre e sem cortes. Todos viram o rosto do agressor, o assistiram golpeando a vítima, jurando-a de morte, ameaçando sua família.
Mas bandidos comuns fazem crimes comuns. Falar da agressão é celebrizar o crime, e o problema não é o crime. Esse nasceu no Éden e vai perdurar até o fim dos dias. Ou, como diria Juca Chaves, neste país todo dia morre um ladrão e nascem dois. O agressor da médica um dia morre, e o mundo terá de se preocupar com outros dois. O problema, prezados amazonenses, é quando o poder público se alia ao crime ou, para ser bem ingênuo, se deixa usar por bandidos.
Tentei convencer a Bianca a pensar bem, não pedir sua demissão. Viramos amigos por causa do mesmo inferno. Eu de um lado, respondendo a uma dezena de processos, ela do outro, como vítima do maior crime jornalístico e político da recente história de Manaus. Hoje nossos filhos brincam juntos, e não há nada que ilustre melhor uma amizade do que isso.
Não adiantou. Quando percebi que não era mais um impulso, não insisti. A Bianca desistiu, depois de três anos de martírio solitário, sem que ninguém, na Rede Globo, nos ministérios públicos, estadual e federal, se dignasse a defendê-la. Poucas pessoas viram tão de perto esse inferno como eu. Vi essa moça em pele e osso, nos primeiros meses de agressão, falar que sua família estava destroçada. Vi seus pais chorando, ora de medo, ora de desânimo, ao ver a filha e as netas naquela situação. Vi seu marido atônito, tentando segurar a barra e, ao mesmo tempo, suportando pressões no próprio emprego, por causa da esposa.
Mas é como eu disse: essas são coisas corriqueiras de uma cena de crime. Sempre há parentes chorando, gritos de desespero etc. O que me choca até hoje é a covardia coletiva, o descrédito nas instituições e a falta de confiança da sociedade numa máquina que existe para proteger os cidadãos de bem, não persegui-los. Todos sabem que Bianca foi vítima de um crime. Donos, editores, repórteres e até porteiros dos jornais sabem. Promotores, advogados, médicos, pacientes, todos sabem. Mas uma realidade sempre pintada sobre as cercanias das bocas de fumo de periferia, que enfeitam os jornais populares, a famosa Lei do Silêncio, chegou ao mundo civilizado das redações, dos escritórios.
Ninguém podia mostrar a verdade, os documentos, denunciar a Prefeitura. Todos, e é bom repetir, todos têm o que esconder, e o criminoso sabe disso. É só mexer com ele, que o inferno chega a galope. Aliado a isso, todos, e é bom repetir, todos pagam seus funcionários com dinheiro público, repassado às enxurradas pela Prefeitura. O fim do processo não pode ser outro: jornais mantidos com dinheiro público não têm interesse em brigar com criminosos tão ferozes quanto ricos. Jornalistas têm medo de, no mínimo, perder o emprego.
É, portanto, outro dos aspectos claros do caso Bianca Abinader. Mas há um ainda pior, que é a criminalização da vítima. Nos três anos em que foi agredida pela própria Prefeitura, a médica não precisou apenas segurar as lágrimas e a família. Era preciso se defender de quem, além de saber a verdade e não conta-la, optou por aceitar o crime, por comodismo ou pior, conveniência pessoal. Eu poderia citar ao menos oito casos de pessoas que viram o crime, tinham ferramentas legais para impedi-lo, mas preferiram, além de não evita-lo, colaboraram para que ele continuasse. Gente muito boa, que conseguiu dar férias até para a inteligência, e disse que psicopata e louca era a vítima.
A gente não se decepciona com aqueles de quem a gente não espera nada de bom. Também vítima do mesmo banditismo paraestatal, eu sei do que bandidos ricos, ajudados por instituições públicas apodrecidas, são capazes. Minha decepção é com o indivíduo, com pessoas específicas que conheço e com a elite intelectual amazonense. Esta, feita de excelentes professores, filósofos, sociólogos, advogados, médicos, empresários e formadores de opinião, preferiu fingir que nada via.
E viu tudo.
Com seu pedido de demissão, Bianca não desiste de brigar com o bandido, desiste de esperar pelo mocinho. Perseguida implacavelmente pela própria Prefeitura, como poderia se defender de um processo absurdo, baseado em provas inexistentes e patrocinado pela cúpula de sua própria ‘empresa’, a Prefeitura de Manaus?
Tentei convencê-la a não desistir, mas ela já havia decidido. No fim, foi ela quem me convenceu de que era a coisa certa a fazer. Jovem, estudiosa, extremamente inteligente, já planeja como será sua nova vida, pós-Prefeitura, muito provavelmente pós-Manaus. Gosto demais da Bianca, por isso quero vê-la bem longe daqui. Se uma frase dessas não denuncia a situação da cidade, não sei mais o que denuncia. Bianca não é a primeira vítima de Manaus, e se tanta gente hoje quer ir embora, é porque não acreditam mais que será a última.
Tenho amigos, como todos têm, que desistiram de Manaus. Não abandonaram a cidade pela falta de perspectiva e de colhões de sua elite, um grupelho de punheteiros culturais ou científicos, intelectuais pagos para não pensar, não enxergar e não comentar o estupro de sua própria cultura, de sua própria gente e do seu próprio futuro. Não foi pela falta de educação pública, esgoto ou transporte público. Não foi pelo provincianismo nem pela feiúra da cidade – e ela é feia e provinciana. Foi porque não acreditavam mais em suas instituições, fossem elas o governo, a polícia ou a justiça. Manaus não iria pra frente com seus velhos preguiçosos e babões. Sua única chance vinha dos jovens, cérebros novos, com uma nova ética e uma vontade de repovoar a cidade, faze-la se dar ao respeito e crescer, finalmente. Hoje, diante da completa falência moral de suas instituições, esses jovens fogem, vão criar seus filhos onde dá gosto olhar pela janela.
Há alguns anos, quando comecei a escrever, gastei boas horas na internet, em fóruns de discussão, defendendo o Amazonas daqueles que xingavam nossas moças, nossa educação, nossa jequice e nosso atraso cultural. Hoje olho para a cidade que meu querido Aníbal Beça tanto amou e me pergunto como puderam e podem, tantos escritores, intelectuais e poetas, gostar dela. Beça chegou a dizer que “Manaus é uma cidade diferente, porque ao invés de a gente morar nela, é ela que mora na gente”.
Não, Aníbal. Manaus é diferente porque, enquanto acolhe bandidos que ninguém mais quis, expulsa engenheiros de TI, como meu amigo Paulo, ou engenheiros químicos, como meu amigo William, ou médicos, como minha amiga Bianca, ou advogados, como meu compadre Sérgio. Gente jovem e pronta para crescer em estados ou países que acolham sua paixão pela correção, por seu senso de coletividade, pela ética profissional e pela crença no poder público. Essa gente, que não tem um passado sombrio, que não tem contratos suspeitos, que nunca fraudou nada na vida, que nunca falsificou, traficou, abusou, roubou, chantageou nem ameaçou ninguém, essa gente precisa se unir, se sentir acompanhada. É natural, quase biológico, que os semelhantes se aproximem. Cansei de ter que explicar como me tornei amigo de pessoas de bem como a Bianca, e há algum tempo passei a responder com um ríspido “Ué, é só bandido que pode fazer amizade em Manaus?”.
Sim, nós gostamos de gente que não tem um passado sombrio, que não tem contratos suspeitos, que nunca fraudou nada na vida, que nunca falsificou, traficou, abusou, roubou, chantageou nem ameaçou ninguém. Diante do quadro atual da cidade, precisamos perguntar se ainda temos esse direito?
Infelizmente, o mercado de amizades para os bandidos anda mais generoso do que para essa gente, que aqui é apelidada de ‘metida a mártir’ ou ‘dona da verdade’, e em outros lugares é chamada apenas de ‘normal’. O resultado é certeiro: essa gente normal vai embora.
Manaus é diferente por isso, Aníbal. Porque não oferece um futuro às pessoas normais. Só aos bandidos.
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