PICICA: "O direito autoral termina por ser menos autoral do que seu nome suscita e mais um simples regulamento para a exploração, controle e disposição dos bens imateriais, sua produção e circulação, pelo capital. Se um direito enuncia, simultânea e automaticamente, uma obrigação, aquela que decorre daqui é que a sociedade está obrigada a pagar para um setor para ter acesso à cultura que ela própria produz de modo comum.
Livros de Humanas: Os Direitos Autorais Atacam Novamente
O famoso site Livros de Humanas,
mediante o qual se pode ter livre acesso ao conhecimento - por meio de
links que conduzem, gratuitamente, a acervos de livros digitalizados -,
está fora do ar sob a alegação que sofreu notificação judicial da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR). Basicamente, a ABDR
move uma ação de perdas e danos, no valor de R$ 10.000,00, em nome das
editoras Contexto e Forense, filiadas duas, pelo fato de que dois livros
delas podiam ser acessados pelo site - um deles, ironicamente, sobre psicose paranoica
-, com pedido cumulado de tutela antecipada para a retirada das obras
da rede, sob o ônus de aplicação de multa diária de R$ 500,00, enquanto
estiverem lá. O réu da ação é uma pessoa física identificada como
suposta proprietária do site.
Isso
reabre o debate sobre direitos autorais - que, afinal de contas, é uma
das pedras de toque do capitalismo cognitivo: encalacrar a produção
(imaterial), que representa uma parcela cada vez maior do valor
econômico, em termos jurídicos para determinar que a remuneração do
"autor" (na verdade, das editoras, gravadoras e afins) esteja
hierarquicamente acima do acesso ao conhecimento, à cultura e à
informação.
A
circulação desses bens de primeira necessidade torna-se condicionada ao
pagamento de vassalagem ao capital, que captura sua produção. Trata-se
de uma contradição em termos curiosa, uma vez que o aparato legal e
judicial não protege verdadeiramente os autores, muito mal remunerados
pelas gravadoras, editoras e todo o circuito comercial, mas dá àquelas
primazia de remuneração mesmo sobre a necessidade social de acesso ao
conhecimento.
O direito autoral termina por ser menos autoral do
que seu nome suscita e mais um simples regulamento para a exploração,
controle e disposição dos bens imateriais, sua produção e circulação,
pelo capital. Se um direito enuncia, simultânea e automaticamente, uma
obrigação, aquela que decorre daqui é que a sociedade está obrigada a
pagar para um setor para ter acesso à cultura que ela própria produz de
modo comum.
Na melhor das hipóteses, temos (a meia-dúzia
de) medalhões da indústria cultural, a auto-intitulada "classe
artística", detentora de gravadoras ou editoras próprias, capitalizando
brutalmente em cima da sua própria obra das mais diversas maneiras,
acomodando-se em produzir - mas essa sequer é a regra, uma vez que a
maioria de artistas e afins são meros empregados - isso sem falar que o
fato do direito autoral transcender à vida do "artista", mantendo sua
obra como domínio privado, constitui-se em um sumo estupor.
Há
uma multidão de jovens que dependem de cópias e xerox para estudar,
trabalhar, viver e mesmo a reprodução sem fins lucrativos é vedada; o
sistema que nega acesso a esses bens, por outro lado, é aquele mesmo que
precisa, para sobreviver, capturar uma produção que demanda, por sua
vez, uma circulação cada vez mais rápida e melhor do conhecimento comum.
No Brasil, a ABDR é apenas um dos braços desse esquema parasitário
que, hoje, possui bastante força graças ao esquema do ECAD - agora
firmemente ancorado no Ministério da Cultura na gestão Ana de Hollanda.
Não
se trata, por óbvio, de excluir um sistema de remuneração para quem
produz arte, cultura ou informação, mas sim de saber que o autor não é
um sujeito transcendental que produz do nada: ele o faz a partir do que é
produção comum da sociedade onde vive, logo, torna-la um ente meramente
privado trata-se de um atentado à própria continuidade do processo
produtivo: a circulação não pode estar posta em função da remuneração,
mas sim a segunda é que precisa ser adequada à primeira. Mesmo que esse
autor ainda pudesse ser considerado como tal, reitero, não é para ele,
via de regra, que a correnteza é vertida.
Para
além dos problemas todos concernentes à juridicização da Vida, ainda
assim, à luz dos princípios constitucionais vigentes e decantados, é de
causar surpresa à tolerância com a legislação vigente, seja por parte
dos legisladores ou dos próprios tribunais - que podem e precisam, eles
mesmos, dar interpretação adequada frente à Constituição vigente,
embora costumem ser até mais realistas do que o rei (o que é
sintomático, aliás). O prejuízo social com o fechamento do Livros de
Humanas, que já foi ensaiado há tempos, até agora, resta não calculado
ou não considerado nas planilhas, o que não é nada à toa.
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