PICICA: "É preciso um pouco de honestidade: a vida acadêmica é para poucos, exige dedicação, tempo e capacidade intelectual. É insanidade acreditar que é possível repetir a experiência bacharelesca de tempos atrás. O alunado de direito no país é outro e possui outras demandas. Enquanto isso, o exame de ordem transfigura-se em algo que não é e não pode ser. Ao acrescentar a filosofia do direito, acaba por piorar (pois infelizmente não possui meios para melhorar) o cenário da educação jurídica e codificar o pensamento filosófico, fazendo com que a técnica sequestre o pensamento crítico (transgressor e nunca estático), este sim, como diria o falecido pensador argentino - que tanto amava a filosofia e o ensino - Luis Alberto Warat, capaz de ir além do senso comum teórico dos juristas."
29/05/2012
A filosofia do direito sequestrada pela técnica: reflexões sobre o novo exame de ordem
A notícia anunciada ontem (28.05.12) pela diretoria do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil de que o próximo exame de ordem conterá questões sobre "filosofia do direito" muito provavelmente desagradou os milhares de candidatos e candidatas de todo o país. "Para que filosofia do direito?", algum jovem estudante de perfil tecnicista pode ter se perguntado.
A argumentação utilizada pela diretoria é bastante superficial, como se
filosofia do direito se confundisse integralmente com hermenêutica e
ética: "O principal argumento em favor da implantação da Filosofia do
Direito no conteúdo programático do Exame é o de que o mundo atual
exige cada vez mais a formação de um advogado que não seja mero
repetidor de leis e normas; e sim um profissional capaz de interpretar
as normas – caso de que cuida a Hermenêutica – e que possua conduta reta
e adequada – o que é tratado pela Ética", diz a notícia.
Que o "mundo atual exige cada vez mais a formação de um advogado que não
seja mero repetidor de normas e leis" não é novidade alguma. A questão é
saber de que forma a inserção de questões de filosofia do direito
auxiliará na formação de um jurista que saiba pensar juridicamente e que
tenha uma postura reflexiva e questionadora - elemento central da
filosofia (dentro e fora do direito). A hipótese inicial é que a mera
inserção de tais questões em nada modifica o padrão médio de potenciais
advogados do país, considerando que o problema central está no "modelo
bancário de ensino" (na terminologia empregada por Paulo Freire), na
ausência de capacitação pedagógica dos professores de direito e no
padrão de avaliação de massa aplicado pela OAB, em razão do absurdo
número de faculdades de direito do país.
A filosofia sequestrada pela técnica
Em razão do crescente número de candidatos e da multiplicação de
cursinhos (que progressivamente dominam as técnicas e detalhes de
realização do exame de ordem, tal como elaborado pela Fundação Getúlio
Vargas, e oferecem como serviço o "sonho de passar no exame de ordem"
para consumidores desesperados de todo o Brasil), a escolha da diretoria
soa como uma opção para diferenciar o exame de ordem e torná-lo mais
difícil diante do leve aumento de candidatos inscritos - 95 mil
inscritos no primeiro exame unificado para 111 mil no sétimo. A
estratégia, entretanto, corrói o significado da filosofia do direito
(que deveria ser chamada de filosofia no direito ou jurisprudência, no
sentido de teoria geral do direito), fazendo com que candidatos decorem
conceitos superficiais sobre temas extremamente complexos e que
demandam reflexões profundamente embasadas.
Por mais que haja uma ideia nobre por trás da escolha da diretoria do
conselho da OAB, como a tentativa de incentivar os alunos de direito a
prestarem mais atenção nas disciplinas propedêuticas ministradas
geralmente nos primeiros anos do curso -, ela é falha por corromper o
significado da filosofia do direito, forçando a codificação do
pensamento em vias únicas, dando a falsa impressão de que a filosofia se
resume a simples conceitos que podem ser memorizados em apostilas de
cursinhos preparatórios e aulas recheadas de técnicas de memorização.
O uso de questões objetivas de filosofia do direito em concursos
jurídicos não é novidade. Tome-se como exemplo o concurso de Defensor
Público do Estado de São Paulo de 2010. A questão 84 é a que segue: "Ao
comentar a doutrina aristotélica da justiça, Tércio Sampaio Ferraz
Júnior, em sua obra Estudos de Filosofia do Direito, indica aquele que
seria o “preceito básico do direito justo, pois só por meio dele a
justiça se revelaria em sua atualidade plena”. Este preceito, que também
pode ser definido como 'uma feliz retificação do justo estritamente
legal' ou ainda 'o justo na concretude', é denominado (A) liberdade; (B)
dignidade; (C) vontade; (D) equidade; (E) piedade". A resposta é
equidade, claro. Mas é difícil imaginar que o candidato tenha a mínima
noção de Aristóteles ou da obra de Tércio Sampaio, um estudioso da
tópica de Theodor Viehweg. Afinal, o que esse tipo de questão verifica
ou avalia? É apropriado incluir questões como esta na prova da OAB?
Os efeitos imediatos da adoção deste tipo de questão no exame de ordem resultarão no interesse utilitário pela filosofia do direito,
implicando na criação de um novo mercado alimentado por tal interesse
(não é difícil imaginar professores sendo contratados para ministrar
aulas de filosofia do direito em cursinhos, editoras publicando livros
específicos de "filosofia do direito para o exame de ordem" ou
reeditando "manuais de filosofia do direito", algo paradoxal na
filosofia, como se ela pudesse ser comprimida ou limitada por um só
texto didático). Os professores de filosofia do direito do primeiro ano
terão que se adaptar forçosamente ao exame de ordem, modificando
radicalmente a estrutura de seus cursos para um padrão superficial de
avaliação, em razão das pressões institucionais por melhores resultados
nos desempenhos dos alunos (o que é uma distorção, visto que o exame de
ordem não pode ser um critério de mensuração do nível de qualidade do ensino jurídico).
Imagine um professor de filosofia do direito que tenha estruturado seu curso com base na leitura de dois textos clássicos, O Conceito de Direito, de Herbert L.A. Hart e Levando Os Direitos a Sério,
de Ronald Dworkin. É provável que esse professor seja pressionado a
abandonar a leitura estrutural (com método próprio para textos de teor
filosófico), capaz de proporcionar debates embasados entre os alunos,
para adotar um plano de ensino focado em "conceitos e tópicos gerais de
filosofia de direito", isto é, um curso superficial de memorização e
falsa transferência de saberes, que não problematiza os textos de
filosofia do direito e não os relaciona aos elementos cotidianos da
prática jurídica. O modo de adoção das questões de filosofia do direito
pela OAB (questões objetivas sobre diversos conceitos) pode gerar tal
tipo de distorção.
Os efeitos negativos são muitos. Há ainda o importante ponto levantado por Murilo Duarte Corrêa no texto "Pensar, refém da técnica: o exame de ordem e a filosofia do direito",
publicado logo após a divulgação da notícia: o sequestro do pensamento
pela técnica. O argumento de Corrêa aproxima-se com aquele explorado
neste texto, mas vai além, invocando a necessidade de resistência
acadêmica ao tecnicismo: "Com relação à Filosofia, sua inclusão no
Exame despertará nos alunos uma preocupação pragmática e instrumental
com a disciplina que, convenientemente, dispensa os professores do
trabalho de inseminar nos alunos o amor pelo pensamento e a crítica como
atividade prática e política educacionais. Com o exame, a Filosofia do
Direito ingressa no rol das disciplinas meramente úteis, cuja utilidade
está provada de antemão e inexoravelmente, contra tudo o que constitui a
natureza essencialmente árida e problemática do pensamento: aquilo que
ele tem de ascese transformadora de horizontes existenciais dos juristas
e, com eles, da mundanidade. Paulatinamente, a OAB e seu exame
normalizam todos os espaços de pensamento no Direito. A Filosofia do
Direito, uma das últimas territorialidades capaz de descodificar o
tecnicismo imposto pelo Exame, deve passar, agora, para o lado do código
contra o qual, historicamente, agia. Na prática - aquela, de que os
juristas mais superficiais tanto gostam -, a Ordem molda indiretamente
os currículos universitários, quando são a universidades que deveriam
pautar os exames de Ordem e concursos públicos. Isso é resultado de um
duplo influxo: a franca decadência das instituições acadêmicas, que se
tornam infatigável espaço de repetições medíocres, e a obturação das
pequenas possibilidades de desconstituir e fugir a este código".
Ao que tudo indica - e não há motivos para acreditar que será diferente
-, a inclusão da disciplina de filosofia do direito no exame de ordem
resultará no sequestro da filosofia pela técnica. Emergirá uma filosofia
do direito pobre, sem conteúdo, codificado, falsamente binário
(correto/falso). Isto pois não serão questões subjetivas, que abrem
espaço para reflexões e argumentos bem construídos, mas sim objetivas,
"abecedê", sem uma indicação prévia de leitura (seria menos pior se
houvessem indicações de três obras e fossem formuladas questões abertas
sobre as mesmas, porém isto soaria como um processo seletivo de um
programa de pós-graduação em ciências humanas).
O embrião de uma ideia: por uma divisão dos cursos de Direito
A oposição central dos candidatos a questões de filosofia do direito,
sociologia jurídica e teoria geral do direito no exame de ordem e em
concursos públicos se dá em razão da completa descrença dos candidatos
de que tais áreas do direito terão qualquer conexão com a prática da
advocacia ou com profissões técnicas como analista jurídico. A objeção
não é infundada. De fato, não há a mínima relação - grosso modo - entre
filosofia do direito e advocacia (ou filosofia do direito e analista
judiciário) e não há razões claras para adotar tal conteúdo em tais
concursos, ao menos da forma como tais áreas do saber serão avaliadas.
O problema central é que o exame de ordem é utilizado como grande
"filtro" para resolver o problema da qualidade de ensino das mais de
1.000 faculdades de direito no país - uma aberração educacional, quando
analisado o padrão global e o número de estudantes de direito em cada
país. Os atores governamentais do Ministério da Educação, iludidos ou
cegos, acreditam que suas portarias são cumpridas e que, de fato, o
curso de direito é ministrado com qualidade em todo o país, seguindo as
orientações federais e a obrigatoriedade de disciplinas propedêuticas
nos primeiros anos e disciplinas jurídicas técnicas nos anos seguintes. O
cenário, porém, é outro: as faculdades são precárias, o ensino é
péssimo e o exame funciona como único filtro capaz de avaliar a
adequação profissional, exclusivamente para a advocacia.
Há no Brasil apenas um tipo de titulação em direito - Bacharel em
Direito -, o que gera a obrigatoriedade de todas as faculdades em se
adequarem ao "padrão de formação do bacharel" estipulado pelo governo
federal. Entretanto, esse bacharel, visualizado como padrão de
profissional do direito, é uma idealização da "cultura bacharelesca" que
predominou no Brasil - o jurista com forte base humanística, capaz de
elaborar pareceres em diversas áreas do conhecimento jurídico -, um
tipo-ideal do profissional do direito detentor de forte base acadêmica e
conhecimento técnico geral. Esse é um mito que precisa acabar. Não há
mais esse bacharel (esse ator social de alta formação intelectual
intimamente ligado com as estruturas de poder, tal como no Brasil do
início do século XX), mas sim estudantes de diversas classes sociais que
ingressam nos cursos de direito com diferentes intenções e visões de
carreiras. A sua maioria, infelizmente, deseja apenas um concurso
público que garanta um mínimo de estabilidade financeira. Alguns desejam
a advocacia (e acabam trabalhando como bachareis, elaborando petições
em grandes escritórios cada vez mais estruturados aos moldes das law firms estadunidenses),
mas são poucos os que desejam os concursos de magistratura e promotoria
e são raros os que desejam a vida profissional acadêmica, pautada na
docência e na pesquisa.
A falta de sensibilidade dos órgãos reguladores da educação brasileira
em perceber os distintos padrões de alunado nas centenas de faculdades
de direito do país gera esta aberração contemporânea, que é obrigar um
único formato de curso de direito, ao passo que seria muito mais sensato
as faculdades terem liberdade para oferecer formações diferenciadas,
umas mais voltadas a aspectos técnicos, outras mais vinculadas a padrões
acadêmicos e humanísticos.
Uma ideia embrionária - uma espécie de proposta preliminar aqui
elaborada e que merece maior refinamento e sofisticação argumentativa - é
que o Ministério da Educação promova uma reavaliação das faculdades de
direito e estabeleça padrões distintos de classificação com base em
formatos distintos de curso: (i) bacharelado em direito e (ii) técnico em direito.
O curso de bacharel, segundo essa divisão hipotética, iria manter a
forte base humanística e acadêmica, treinando um profissional de direito
para a vida acadêmica e para os cargos governamentais, que exigem forte
noção de antropologia, sociologia, história, economia, bem como
conhecimentos profundos em direito para a elaboração de marcos
regulatórios. O curso de técnico em direito, de maneira distinta, iria
fornecer noções gerais sobre a estrutura do judiciário, conhecimentos
jurídicos específicos (processo civil, processo penal, direito do
trabalho, direito tributário, etc), cursos de redação, noções de
administração judiciária, mas não iria contemplar disciplinas de
filosofia, teoria geral, economia e sociologia. Deste modo, teríamos
dois profissionais distintos: o bacharel e o técnico em direito e ambos
poderiam prestar o exame de ordem, porém teriam formações distintas e
rotas profissionais traçadas em caminhos que não se confundem. A
avaliação para cada tipo de curso pelo MEC poderia, deste modo, ser
realizada com muito mais seriedade. O padrão de profissional,
consequentemente, seria muito mais adequado às ambições e aspirações de
cada estudante, tornando o ambiente de trabalho muito mais sério e
definido para os docentes (considerando que as metodologias de ensino
nos dois modelos de curso diferem agudamente).
Tal modelo de divisão de cursos não iria influenciar a prática da
advocacia, visto que nos dois cursos os estudantes teriam aulas básicas
sobre prática jurídica. Tal como no Reino Unido - que exige do candidato
qualquer formação universitária (undergraduate degree), desde que o mesmo faça um breve curso de fundamentos jurídicos chamado Graduate Diploma in Law e outro, de ordem prática, intitulado Legal Practice Course (para a distinção entre barristers e solicitors em termos de formação, cf. 'Passion for Law')-, o exame de ordem poderia ser realizado tanto pelo técnico quanto pelo bacharel, pois iria verificar habilidades para a advocacia (e
ambos os cursos poderiam oferecer disciplinas dogmáticas, tal como é
feito do terceiro ano em diante nos cursos existentes no Brasil). Além
de verificar a competência intelectual, o candidato seria obrigado a
comprovar um período de "estágio supervisionado", isto é, um período em
que esteve sob a tutela profissional de um advogado experiente,
exercendo funções básicas em um escritório. O exame de ordem, deste
modo, iria cumprir sua verdadeira função: verificar a competência de um
detentor de conhecimentos jurídicos para a prática da advocacia.
Assim, os técnicos em direito seguiriam livremente suas rotas
profissionais através da prestação de concursos públicos - estes sim,
exclusivamente técnicos, tal como a função a ser exercida -, ao invés de
serem forçados a estudar sociologia jurídica e filosofia do direito,
disciplinas que devem ser estudadas por quem realmente tem vocação e
interesse em pensar o direito de forma crítica (e ensinadas por
profissionais competentes e ligados ao direito e não qualquer mestre em
filosofia ou sociologia). É preciso um pouco de honestidade: a vida
acadêmica é para poucos, exige dedicação, tempo e capacidade
intelectual. É insanidade acreditar que é possível repetir a experiência
bacharelesca de tempos atrás. O alunado de direito no país é outro e
possui outras demandas. Enquanto isso, o exame de ordem transfigura-se
em algo que não é e não pode ser. Ao acrescentar a filosofia do direito,
acaba por piorar (pois infelizmente não possui meios para melhorar) o
cenário da educação jurídica e codificar o pensamento filosófico,
fazendo com que a técnica sequestre o pensamento crítico (transgressor e
nunca estático), este sim, como diria o falecido pensador argentino -
que tanto amava a filosofia e o ensino - Luis Alberto Warat, capaz de ir
além do senso comum teórico dos juristas.
Fonte: Razão em crise
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