PICICA: "Deleuze, por certo, tinha razão ao dizer que não havia governos de esquerda, mas também acertou quando colocou que não era possível encontrar uma saída apenas desconstituindo o posto: é preciso constituir o novo, a negação permanente do velho, por si só, é uma sombra, uma versão do Mesmo (um anti-governismo de desafortunados pelas urnas ou pela política, no caso)."
Grécia Desgovernada: Por uma Práxis do Anti-Governo
Aurora Dourada: Por que não uma suástica de vez? |
O resultado das eleições gregas ocorridas
há uma semana foi claro: a Grécia está desgovernada no sentido em que
dizemos que um carro está desgovernado. Evidentemente, isso não é à toa:
o país, mais do que nenhum outro no Velho Mundo, foi atingido pela
crise no Euro. Também, pouquíssimos países da Europa são tão
problemáticos quanto a Grécia contemporânea em termos políticos: o
rescaldo da independência do Império Otomano no século 19º, passando
pelas constantes intervenções das potências europeias e incluindo a
tragédia da Segunda Guerra Mundial e seus ecos no país - uma guerra
civil entre fascistas e libertadores, um intermezzo democrático e uma
ditadura militar - deixaram de legado um sistema político oligarquizado,
controlado por famílias e prestes a explodir.
Há várias
explicações para a crise grega. Os credores do país preferem aquela
versão que culpa os gregos pela sua própria desgraça, restando apenas a
resignação e o sacrifício do pagamento da dívida sem fim. Há outros
mitos, como aquele que credita a crise à realização das Olimpíadas de
2004 em Atenas é causa do processo. O fato
é que o Euro prejudica a economia grega desde o momento que a faz
compartilhar do mesmo padrão monetário que um país como a Alemanha.
Então, temos uma questão que vai para além de "equilíbrio fiscal": a
conta corrente do país fica desequilibrada porque ele importa demais,
suas cadeias produtivas tornam-se meras maquiadoras - viciadas, ainda,
em empréstimos a juros baixos no mercado europeu (e o Estado se ancorou
nisso para tomar dívidas e financiar algumas estruturas públicas).
É claro
que o velho fisiologismo da política grega, o que resulta desde a vista
grossa para a sonegação fiscal dos mais ricos - enquanto pessoas físicas
- até o desvio de verbas públicas nas Olimpíadas contam, mas certamente
não explicam tudo. Porque, do contrário, Espanha e Portugal não
estariam em crise. Muito menos a Irlanda. E não há como exigir um
arrocho fiscal desses países que seja capaz de equilibrar as contas:
seja pelo fato da paridade absoluta entre desiguais ser aberrante ou,
não percam isso de vista, a supervalorização internacional da moeda
comum europeia - negociada por Merkel e Sarkozy para passar a mão na
cabeça de Washington com sua demente irresponsabilidade fiscal - ajudar a
asfixiar mais ainda as pequenas economias da Europa via comércio
extra-europeu.
E a
disputa política na Grécia moderna não é diferente do resto da Europa:
um pastiche do que era o velho Sacro-Império Romano Germânico, onde
papistas e defensores do imperador eram os dois pólos em nível geral e
em ramificações partidárias locais - o que só serviu para alimentar a
desgraça de homens brilhantes como Dante Alighieri. Prevalece na
Grécia o mesmo que no resto da Europa, seja internamente ou na política
europeia: um partido de centro-direita (alinhado ao Partido Popular
europeu, no caso o Nova Democracia) e outro de centro-esquerda (adequado
ao Partido Socialista Europeu, no caso o PASOK) se alternando no poder
com suas matizes.
Na Grécia, essa ópera bufa sempre teve contornos piores, uma vez que os establishments partidários giravam em torno de famílias e oligarcas. Os socialistas sempre foram tributários da família Papandreou, enquanto entre os conservadores, podemos dizer o mesmo da família Karamanlis. E
desde de 1974 são eles que se alternam no poder, com algumas crises
tópicas, como aquele que resultou num grande governo de solidariedade
nacional no fim dos ano 80 - que incluiu mesmo os comunistas - além de
uma queda dolorosa de governo para a centro-direita, há pouco tempo, que
trouxe o PASOK de volta ao poder para ter uma posição ambígua com as
políticas de austeridade que a Europa lhe obrigou; fenômeno que resultou
no gabinete do governo técnico de Lucas Papademos (apoiado por uma
coalizão ampla, a exemplo do governo Monti, na Itália), implodido pelas
circunstâncias.
O cenário
atual, passados sete dias das eleições nacionais, é o rescaldo de uma
tempestade: com uma abstenção relevante (na casa de 35%), a pulverização
total dos votos - com a pior votação da história do Nova Democracia e a
pior, desde que se tornou um partido relevante, do PASOK -, a ascensão
de um partido nazista ao parlamento - o Aurora Dourada,
cujo símbolo, uma suástica disfarçada, indica bem a que ele veio - e a
impossibilidade de se formar governo imediatamente, fecham o quadro de
desgoverno. A vantagem relativa que o Nova Democracia possui no
parlamento é fruto, inclusive, de uma distorção pró-governabilidade no
sistema eleitoral grego: se 250 das 300 cadeiras do parlamento são
divididas conforme o voto proporcional, as outras 50 são um bônus para o
partido que ficou em primeiro lugar (relativamente, que seja).
O ponto é
que a vantagem do Nova Democracia de Antonis Samaras - 108 cadeiras
contra o Syriza, uma coalizão de vários grupos da esquerda radical, que
fez 52 deputados - se explica unicamente pelo bônus eleitoral. Se isso
foi criado para construir uma vantagem para o vencedor das eleições em
um país politicamente complexo, no cenário atual, apenas se torna um
fator de distorção que constrói uma maioria abstrata e quase ilegítima.
Mesmo com isso, um governo de direita na Grécia só seria possível caso
Samaras resolvesse fechar com os Gregos Independentes (uma cisão de seu
próprio partido) e com os nazistas do Aurora Dourada (sobre essa última
opção, ela foi aparentemente descartada). Sem o Aurora, Samaras está em
um mato sem cachorro. E existe a possibilidade que o PASOK consiga,
apesar da terceira colocação, fazer o governo.
O atual
estado de coisas do Estado grego é de pura indeterminação: a perda de
crédito na política parlamentar - fundada na representação partidária
com interface nas instâncias da União Europeia - além dos confrontos campais e quotidianos entre manifestantes e a polícia nas praças públicas geram
uma pressão suficientemente grande para que haja uma crise no sistema,
mas também não resultaram na construção transversal de uma nova
organização.
Se por um
lado a esquerda venceu nas urnas (dentre os partidos que superaram a
cláusula de barreira de 5%, que juntos representaram 80,97% dos votos
válidos, a esquerda venceu por 57,5% a 42,5%) , por outro, a divisão dos
vários partidos fez com que nenhum partido dela recebesse o bônus de 50
deputados, o que caiu no colo do Nova Democracia, garantindo a vantagem
em cadeiras que, no voto, a direita não teve (162 a 138). Pior ainda,
não há, entre os partidos organizados, um programa - ou uma disposição -
suficientemente clara e forte para resistir às "políticas de
austeridade", um eufemismo para o estrangulamento financeiro ao qual a
Grécia é submetida neste exato momento.
O
naufrágio está desenhado e o quadro grego é uma versão extremada do que
não deixa de ser o de toda a Europa. O crescimento da extrema-direita -
minando os velhos partidos de centro-direita, seja em versões mais
moderadas, como o Front National da França ou, sem máscaras ou
eufemismos, na forma do nazismo praticamente declarado como no caso do
Aurora Dourada -, o desinteresse pela política partidária e a
dificuldade dos movimentos sociais em constituírem alternativas
concretas, produzindo um efeito pendular entre velhos modos de
governismo (ou alternativas de esquerda que variam entre a velha
social-democracia, o eurocomunismo e um suposto novo-esquerdismo) e o
desgovernismo.
Deleuze,
por certo, tinha razão ao dizer que não havia governos de esquerda, mas
também acertou quando colocou que não era possível encontrar uma saída
apenas desconstituindo o posto: é preciso constituir o novo, a negação
permanente do velho, por si só, é uma sombra, uma versão do Mesmo (um
anti-governismo de desafortunados pelas urnas ou pela política, no
caso). Esse é o desafio grego no momento, como também não deixa de ser
dos franceses, é preciso trabalhar maquiavelicamente com o que está
posto sem perder de vista o horizonte histórico - porque é lá para onde
vão as linhas de fuga. Um desgoverno - uma "crise de governabilidade" - é
apenas um governo às avessas, é preciso um anti-governismo obstinado, o
que passa pelo enfrentamento positivo do Estado.
P.S.:
Existe a possibilidade do PASOK formar o governo, apesar dos pesares, a
única vantagem disso, em si, é que Berlim sofreria o segundo golpe duro
em poucas semanas, o que freia a política de estrangulamento da Troika.
Seria uma vitória no sentido de um recuo, ainda que não alente uma
transformação tal como necessária.
Fonte: O Descurvo
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