abril 02, 2015

Uma falsa polarização", por Silvio Caccia Bava

PICICA: "Pesquisas recentes mostram uma classe média tradicional assustada com o cenário econômico, com medo do desemprego, com medo de uma perda maior de poder aquisitivo, coisa que já estão sentindo. Há muito tempo não se via esse medo voltar. É essa insatisfação que é trabalhada pela grande imprensa escrita e televisiva, e mesmo internacional, para direcioná-la contra o governo e até para criar a pressão “fora Dilma”. Não importa que a crise seja internacional e que seja de fato necessário equilibrar as contas do país. Importa que o ajuste não toque nos mais ricos e a corrupção passe a ser a explicação da situação atual. 

Essa estratégia de focar a corrupção para promover o desgaste do governo está trazendo resultados inesperados, pois atinge o sistema político como um todo. As ações do Ministério Público implicam também os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, Aécio Neves, todos os partidos e outras personalidades denuncistas da oposição.

É com base nas denúncias contra a corrupção que a oposição quer mobilizar a população contra o governo, e tem conseguido bons resultados. Mas a classe média que foi para as ruas é um setor muito desinformado. Até uma simples pergunta de quem assumiria a Presidência num eventual impedimento de Dilma fica sem resposta para a maioria dos manifestantes. Apenas 27% defendem “fora Dilma”. Eles estão na rua para defender o que entendem por seus direitos num cenário econômico recessivo, o que guarda semelhança com as demandas apresentadas pelas centrais sindicais em outra recente manifestação de peso."

EDITORIAL
Uma falsa polarização

Claudius
por Silvio Caccia Bava

Há intelectuais que querem nos fazer crer que estamos vivendo no Brasil uma polarização de posições políticas entre esquerda e direita, entre neoliberais e bolivarianos, entre uma classe média “coxinha” e os trabalhadores, e por aí vai. De quebra assistimos à condenação do governo federal e do PT como corruptos. Isso é o que vemos na superfície e que gera uma insatisfação geral.
 
O que não está visível são os principais atores que impulsionam essa polarização e seus objetivos. Um primeiro passo para entendermos essa situação é olhar para o lucro das grandes empresas e bancos. As empresas que têm ações na Bovespa, que são as maiores, tiveram aumento de seu lucro da ordem de 46% em 2014, se comparado ao lucro de 2013. E os bancos, algo entre 26% (Itaú) e 30% (Safra). Isso numa economia em que o crescimento do PIB de 2014 ficou próximo de zero. Como se opera esse milagre? Essa rentabilidade depende muito da taxa Selic, que remunera a dívida pública, e das taxas cobradas pela intermediação financeira sobre empréstimos e financiamentos pelos bancos. 

O governo federal, adotando políticas contracíclicas para garantir o dinamismo da economia brasileira diante da crise internacional, em 2009 reduziu a taxa Selic; em 2010 sofreu pressões para aumentá-la novamente; em 2011 retomou a política de baixar os juros. Como consequência, 2014 apresentou o menor superávit primário desde 1999, ou seja, a menor remuneração para os rentistas. O setor rentista também se sentiu ameaçado com a ação dos bancos públicos – Caixa e BNDES, especialmente –, que aumentaram o crédito, baixaram os juros e ganharam mercado. Os bancos públicos, de 35% do mercado que detinham em 2009, chegam a 55% em 2015. O congelamento dos preços da gasolina e da eletricidade tem o mesmo sentido, de preservar a capacidade de compra das pessoas e manter o dinamismo do mercado interno, e também contrariou interesses das empresas concessionárias.

Como consequência dessas políticas, o grande empresariado e o setor financeiro se uniram contra a redução da rentabilidade do rentismo, contra as políticas anticíclicas, contra o governo Dilma. Isso se expressou nas eleições de 2014 e nas tentativas de desestabilização política que continuam até hoje. 

A estratégia defendida pelos governos do PT, de promover um impacto “keynesiano” de estímulo da economia pelo lado da demanda, de preservação do emprego, pode ser observada na distribuição entre renda do trabalho (salários, pensões, aposentadorias) e renda do capital (lucros, juros, aluguéis e renda da terra) nas contas nacionais. A participação da renda do trabalho no PIB era de 35% em 2003; em 2013, foi de 47%. O rentismo disputa a retomada de parcela maior da renda nacional, travando, com isso, o impacto esperado das políticas contracíclicas e o desenvolvimento do país.
 
Pesquisas recentes mostram uma classe média tradicional assustada com o cenário econômico, com medo do desemprego, com medo de uma perda maior de poder aquisitivo, coisa que já estão sentindo. Há muito tempo não se via esse medo voltar. É essa insatisfação que é trabalhada pela grande imprensa escrita e televisiva, e mesmo internacional, para direcioná-la contra o governo e até para criar a pressão “fora Dilma”. Não importa que a crise seja internacional e que seja de fato necessário equilibrar as contas do país. Importa que o ajuste não toque nos mais ricos e a corrupção passe a ser a explicação da situação atual. 

Essa estratégia de focar a corrupção para promover o desgaste do governo está trazendo resultados inesperados, pois atinge o sistema político como um todo. As ações do Ministério Público implicam também os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, Aécio Neves, todos os partidos e outras personalidades denuncistas da oposição.
 
É com base nas denúncias contra a corrupção que a oposição quer mobilizar a população contra o governo, e tem conseguido bons resultados. Mas a classe média que foi para as ruas é um setor muito desinformado. Até uma simples pergunta de quem assumiria a Presidência num eventual impedimento de Dilma fica sem resposta para a maioria dos manifestantes. Apenas 27% defendem “fora Dilma”. Eles estão na rua para defender o que entendem por seus direitos num cenário econômico recessivo, o que guarda semelhança com as demandas apresentadas pelas centrais sindicais em outra recente manifestação de peso. 

Também é importante lembrar que 37 milhões de brasileiros votaram branco ou nulo nas últimas eleições, ou seja, não se posicionaram em relação às opções eleitorais disponíveis. Isso não significa que não tenham opiniões, mas que não se sentem representados ou não valorizam mais este sistema político. Temos de lembrar também o rechaço aos partidos políticos, seja nas manifestações de junho de 2013, seja nas de 15 de março deste ano. Quando políticos quiseram se manifestar, ouviram da população nas ruas um veto: gritava-se “sem partido, sem partido”. É o próprio sistema político que está em xeque, e não este ou aquele partido. É uma oportunidade interessante enfrentar essa falsa polarização, promovendo um trabalho de esclarecimento público sobre os verdadeiros agentes e interesses que apostam na desestabilização do governo. Se ao lado desses esclarecimentos surgir um forte movimento de defesa dos direitos sociais, também buscando mobilizar a classe média, então o jogo pode mudar e a reforma política por uma Constituinte independente pode se tornar uma bandeira de muitos, de uma ampla aliança da cidadania com capacidade para mudar a correlação de forças. Diretas Já! foi assim.

Silvio Caccia Bava 

Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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