PICICA: "Compreender o espaço urbano à luz dos conceitos “metrópole”,
“neoliberalismo” e “biopolítica” é fundamental para perceber como este
se constitui enquanto um “território das lutas e da produção de uma nova
subjetividade, aquela correlata às modificações da relação entre
produção e espaço”, pontua Alexandre Mendes em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Na avaliação dele, a metrópole é hoje
uma “verdadeira ‘fábrica social e difusa’, uma nova usina produtiva que
opera, não por linhas, moldes e rígidas topologias, mas por redes,
modulações e apreensões intensivas do fluxo social”. Ele explica que
essas “apreensões buscam, justamente, a apropriação de tudo que é
produzido em comum através das relações e cooperações que entram em
ebulição no movimentado caldeirão das metrópoles”.
Na entrevista a seguir, Mendes traça ainda uma distinção entre o que vem a ser a cidadania concebida a partir da ideia de “comum” e as formas keynesianas ou neoliberais
que propõem a gestão do espaço urbano, sinalizando que o conceito de
comum “nos ajuda a pensar também nas formas atuais de fazer política e
luta na metrópole”. As políticas do comum, diferente
das demais, pontua, “assumem o desafio de caminhar para além do
bem-estar e da dívida (do público e do privado), buscando potencializar
formas de conduta e de subjetivação que deslizam dos mecanismos
disciplinares-fabris e do biopoder das finanças (...). Elas assumem o
terreno biopolítico e produtivo da metrópole garantindo e proliferando
espaços de cooperação, encontro de singularidades, mobilização e
constituição relativamente autônoma da vida. Elas miram naquilo que Lefebvre e Bachelard definiam como uma poética do espaço: o habitar como poeta, a vida como obra de arte”.
Alexandre F. Mendes (foto
abaixo) é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ. Doutor em Direito pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Criminologia e Direito Penal pela
Universidade Cândido Mendes – UCAM. Foi Defensor Público do Estado do
Rio de Janeiro, entre 2006 e 2011, tendo coordenado o Núcleo de Terras e
Habitação (2010).
Atualmente pesquisa Teoria Política e
Teoria do Direito e realiza investigações em Sociologia Jurídica e
Sociologia Urbana. É pesquisador associado do Laboratório Território e
Comunicação – LABTEC da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
e participa da rede Universidade Nômade e dos Círculos de cidadania –
Rio de Janeiro, Publicou, com Bruno Cava, o livro A vida dos direitos.
Violência e Modernidade em Foucault e Agamben (2006). É coeditor da
Revista Lugar Comum: Estudos de Mídia, Cultura e Democracia, da UFRJ."
Metrópoles e Multidão: das políticas públicas às políticas do comum. Entrevista especial com Alexandre Mendes
“A metrópole venceu: ela
implodiu-explodiu todos os muros disciplinares que pretenderiam governar
o espaço e irrompeu como um fenômeno global”, afirma o pesquisador.
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Foto: Blog adcidade |
Compreender o espaço urbano à luz dos conceitos “metrópole”,
“neoliberalismo” e “biopolítica” é fundamental para perceber como este
se constitui enquanto um “território das lutas e da produção de uma nova
subjetividade, aquela correlata às modificações da relação entre
produção e espaço”, pontua Alexandre Mendes em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Na avaliação dele, a metrópole é hoje
uma “verdadeira ‘fábrica social e difusa’, uma nova usina produtiva que
opera, não por linhas, moldes e rígidas topologias, mas por redes,
modulações e apreensões intensivas do fluxo social”. Ele explica que
essas “apreensões buscam, justamente, a apropriação de tudo que é
produzido em comum através das relações e cooperações que entram em
ebulição no movimentado caldeirão das metrópoles”.
Na entrevista a seguir, Mendes traça ainda uma distinção entre o que vem a ser a cidadania concebida a partir da ideia de “comum” e as formas keynesianas ou neoliberais
que propõem a gestão do espaço urbano, sinalizando que o conceito de
comum “nos ajuda a pensar também nas formas atuais de fazer política e
luta na metrópole”. As políticas do comum, diferente
das demais, pontua, “assumem o desafio de caminhar para além do
bem-estar e da dívida (do público e do privado), buscando potencializar
formas de conduta e de subjetivação que deslizam dos mecanismos
disciplinares-fabris e do biopoder das finanças (...). Elas assumem o
terreno biopolítico e produtivo da metrópole garantindo e proliferando
espaços de cooperação, encontro de singularidades, mobilização e
constituição relativamente autônoma da vida. Elas miram naquilo que Lefebvre e Bachelard definiam como uma poética do espaço: o habitar como poeta, a vida como obra de arte”.
Alexandre F. Mendes (foto
abaixo) é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ. Doutor em Direito pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Criminologia e Direito Penal pela
Universidade Cândido Mendes – UCAM. Foi Defensor Público do Estado do
Rio de Janeiro, entre 2006 e 2011, tendo coordenado o Núcleo de Terras e
Habitação (2010).
Atualmente pesquisa Teoria Política e
Teoria do Direito e realiza investigações em Sociologia Jurídica e
Sociologia Urbana. É pesquisador associado do Laboratório Território e
Comunicação – LABTEC da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
e participa da rede Universidade Nômade e dos Círculos de cidadania –
Rio de Janeiro, Publicou, com Bruno Cava, o livro A vida dos direitos.
Violência e Modernidade em Foucault e Agamben (2006). É coeditor da
Revista Lugar Comum: Estudos de Mídia, Cultura e Democracia, da UFRJ.
Confira a entrevista.
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Foto: Cristina Guerini |
IHU On-Line – De que maneira devemos compreender a Metrópole
contemporânea? Por que ela se tornou um conceito-chave para decifrarmos
os desafios do século XXI?
Alexandre F. Mendes -
Há muito tempo se percebe um sonho disciplinar com relação à cidade. Do
acampamento romano ao planejamento moderno, trata-se de esquadrinhar o
espaço a partir de uma lógica hierárquica, geométrica e funcional, que
busca organizar os fluxos da cidade através de fronteiras bem
determinadas. Le Corbusier, o famoso arquiteto suíço, abre o seu livro L’Urbanisme
invocando o caminhar do homens, aquele que avança em linha reta, com
postura altiva, sendo coberto de racionalidade, contra o caminhar das
mulas, andar torto, em curvas, direcionado ao chão, que gera confusão e
produz uma mistura perigosa para os homens. No mesmo livro, a metrópole de Nova York
aparece como o contraexemplo ruidoso de todo urbanismo possível:
amálgama pernicioso, espaço dissonante, usina tóxica de homens perdidos.
No entanto, no confronto com a utopia da cidade-racional, talvez seja o
caso de afirmar que a metrópole venceu: ela implodiu-explodiu todos os
muros disciplinares que pretenderiam governar o espaço e irrompeu como
um fenômeno global. Não por acaso, em seus breves comentários sobre o
urbano, Foucault notou que a escola americana (os urbanistas de Chicago) tinha captado a tendência biopolítica das cidades:
não esquadrinhar o espaço a partir de um marco zero, mas compreender e
estar inserido nos fluxos produzidos pelo próprio urbano.
A metrópole, então, é este híbrido biopolítico, espaço da desmedida, território mil-folhas, terreno da proliferação. Se, para Foucault,
o controle da peste reclama uma solução disciplinar, a metrópole deve
ser pensada através do contágio e da proliferação. É evidente que nos
deparamos, portanto, com novas e sofisticadas formas de controle
(a normalização cujo modelo, para o filósofo, é o controle da varíola),
mas também com extraordinárias possibilidades de disseminação de novas
resistências.
IHU On-Line – Nesse sentido,
como as concepções da Metrópole e da Multidão inauguram categorias
sociológicas e filosóficas com potência para o surgimento de novas
construções democráticas e de direitos em nossas sociedades?
Alexandre F. Mendes - É
interessante notar que vários autores, de diferentes matrizes,
perceberam que na virada política dos anos 1970 residia uma nova forma
de abordar o urbano. Henri Lefebvre, no livro A revolução urbana,
recusou ver o espaço como um meio indiferente, como aquela “soma dos
lugares onde a mais valia se forma e se distribui” (Lefebvre, H. 1970),
para reconhecer que, cada vez mais, o espaço era produzido por um trabalho social de caráter global.
O urbano irrompe, portanto, como um conjunto de relações que penetra e
constitui o espaço como um campo de interações e atividades sociais,
afastando o papel central do mapa físico e da utopia do plano (Simoni de
S., 2013). Na mesma década, o filósofo Antonio Negri
provocou uma interessante polêmica em torno da passagem do conceito de
operário-massa para o operário-social. Tratava-se de constituir o urbano
como o território das lutas e da produção de uma nova
subjetividade, aquela correlata às modificações da relação entre
produção e espaço. Recentemente, a metrópole é percebida como uma
verdadeira “fábrica social e difusa”, uma nova usina produtiva que
opera, não por linhas, moldes e rígidas topologias, mas por redes,
modulações e apreensões intensivas do fluxo social. Essas apreensões
buscam, justamente, a apropriação de tudo que é produzido em comum
através das relações e cooperações que entram em ebulição no movimentado
caldeirão das metrópoles. Por isso podemos facilmente tecer uma relação
entre metrópole, neoliberalismo e biopolítica. O neoliberalismo, segundo Foucault,
seria justamente uma arte de governar que busca um governo da
sociedade, uma política da vida, isto é, ele não se caracteriza por um
governo econômico das trocas, mas da condução e constituição das
próprias relações sociais, do “ambiente social” e das subjetividades a
partir da forma-empresa.
É possível provocar um novo tipo de “greve” (ou seja, de luta social e por direitos), no horizonte móvel das metrópoles biopolíticas?
A resposta é, sem dúvida, afirmativa e poderia ser desdobrada em
inúmeros exemplos. Para mencionar um deles, é curioso perceber que, a
partir da década de 1990, iniciou-se uma reflexão sobre a governança
global das metrópoles, convertidas não apenas em verdadeiros players,
mas em máquinas de produção de novas hierarquias. É a figura simbólica
do “arranha-céu” de Saskia Sassen (o comando está no topo), mas também dos “territórios de fragmentação e dinheiro” de Milton Santos
(as solidariedades verticais cujo epicentro são as empresas
hegemônicas). Por outro lado, não poderíamos afirmar que, a partir da crise de 2008 e do ciclo de lutas da primavera árabe, não se formou uma cooperação, desde baixo, entre várias metrópoles insurgentes: Cairo, Madrid, Atenas, Nova York, Istambul, São Paulo, Rio de Janeiro etc., renovando e requalificando as lutas anteriores por outra globalização (Seattle, Gênova, Bangalore, Cochabamba etc.)?
Centralidade do comum
É a partir de ambos os ciclos que podemos enxergar um amplo e intenso trabalho de reflexão e construção de uma nova linguagem e composição de direitos que têm como fio condutor a centralidade do comum:
direitos relacionados à proteção e ao compartilhamento autônomo de
saberes, informações e linguagens; direitos voltados para o acesso e
organização democrática dos serviços relacionados diretamente à vida
(energia, água, tecnologia etc.), direitos relacionados ao bem viver (no
vocabulário restrito do Fórum Social Mundial V: “os
bens comuns da Terra e dos povos”), direito de auto-organização de
territórios indígenas, direito a viver e se expressar a partir de
diferentes culturas e cosmovisões, direitos relacionados a uma cidadania
global etc. Além disso, recentemente, os direitos relacionados à
mobilidade urbana, à preservação dos espaços comuns da
metrópole (parques, áreas de uso comum etc.) e, fundamentalmente, os
direitos clássicos (políticos e sociais) requalificados como direitos à
produção da própria metrópole, marco que está para além da ideia
municipalista e cívico-republicana de participação. É talvez nesse
último ponto também que reside a dupla distância entre uma cidadania
concebida a partir do comum e as formas keynesianas ou neoliberais de gestão da vida e do urbano.
"A metrópole é este híbrido biopolítico, espaço da desmedida, território mil-folhas, terreno da proliferação"
"A metrópole é este híbrido biopolítico, espaço da desmedida, território mil-folhas, terreno da proliferação"
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IHU On-Line – Como podemos caracterizar as políticas públicas e as políticas do comum?
Alexandre F. Mendes -
Poderíamos afirmar, de forma bem sumária, que o século XX, especialmente
no período entre guerras e após a Segunda Guerra Mundial, conviveu, em
grande parte, com políticas de distribuição cuja referência é o bem-estar
(New Deal, keynesianismo, Plano Beveridge etc.) e o terreno de
sustentação era a regulação salarial fordista (Cocco, 1999). A política
social era pensada ou como contrapeso às características selvagens da acumulação capitalista,
ou como resultado positivo e generoso de uma política econômica
bem-sucedida. A repartição dos recursos deveria ocorrer por uma
permanente regulação pública que buscava efeitos de igualdade material e
socialização do consumo. No campo político, a negociação da
distribuição se dava através de uma representatividade garantida por
processos de homogeneização produtiva e social (partidos, sindicatos e
movimentos sociais setorizados). Sabemos que as lutas em torno de uma
distribuição sempre mais vantajosa, associadas às revoltas contra os
processos de disciplinamento do operário-massa, produziram uma
reviravolta cuja reposta são as políticas neoliberais que já tinham sido concebidas contra os primeiros movimentos de socialização e planificação da economia do início do século.
Financeirização da vida
Tendo a desigualdade como regulador geral da sociedade, o neoliberalismo
propõe que cada indivíduo-empresa possa, ele próprio, se garantir
contra os riscos inerentes à existência humana, através de contratos de
seguro, da financeirização e da privatização
dos serviços (moradia, saúde, educação etc.), da propriedade individual
como instrumento de alavancagem e de um permanente esforço de
aprimoramento do “capital humano” para fazer frente ao nível estrutural
de desemprego. A homogeneização fordista se dilui em um sem-número de
formas de contratação, realocação produtiva, arranjos organizativos
móveis e flexíveis, transformação da forma-empresa e modulação do
salário na direção de rendas sempre variáveis. As finanças se
transformam no dispositivo de governo da nova força de trabalho através
da dívida e de mensuração permanente uma produção que, como vimos, é
cada vez mais socializada e correlata à própria vida. Com relação à
tradição do bem-estar, a passagem para uma política do indivíduo-empresa endividado (Lazzarato,
2012) gerou dois movimentos curiosos: primeiro, a adesão de uma série
de partidos sociais-democratas e socialistas ao neoliberalismo, fenômeno
cuja história remete ao SPD alemão nos anos 1960 e que
encontra uma série de exemplos na atualidade; segundo, uma defesa cada
vez mais nostálgica, pelo tradicional campo de esquerda, de políticas de
bem-estar e regulação pública que não encontram mais um terreno material de sustentação no pós-fordismo.
Os dois processos podem ser explicados por uma interessante observação de Foucault
em suas aulas sobre o neoliberalismo: o socialismo nunca possuiu uma
“arte de governar” própria, necessitando pegar de outras
governamentalidades a sua razão e os seus princípios. Isso explicaria
tanto sua rápida oscilação para as políticas neoliberais de individuação, como sua total falta de imaginação para contrapor essas políticas com uma razão governamental que não seja keynesiana, planificadora e interventiva. As políticas do comum, pelo contrário, assumem o desafio
de caminhar para além do bem-estar e da dívida (do público e do
privado), buscando potencializar formas de conduta e de subjetivação que
deslizam dos mecanismos disciplinares-fabris e do biopoder das finanças
(Marrazzi, 2011). Elas assumem o terreno biopolítico e produtivo da metrópole
garantindo e proliferando espaços de cooperação, encontro de
singularidades, mobilização e constituição relativamente autônoma da
vida. Elas miram naquilo que Lefebvre e Bachelard
definiam como uma poética do espaço: o habitar como poeta, a vida como
obra de arte (Naback, 2015). Seu instrumentos não se reduzem aos mapas
físicos, eles priorizam uma cartografia afetiva do território; não
buscam elaborar um plano, operam por intensidades já existentes nas
próprias interações sociais. Como propõe o urbanista Andy Merrifield, trata-se de estender o conceito de direito à cidade para ampla política de encontros no terreno das metrópoles globais.
IHU On-Line – Como as políticas do comum se tornam alternativas? O que há de novo nesta perspectiva?
Alexandre F. Mendes - A questão é como pensar uma política da vida que deslize, ao mesmo tempo, das tradicionais perspectivas de bem-estar e também da biopolítica neoliberal do endividamento. Poderia citar dois eixos de debates interessantes sobre o assunto: na América Latina, em torno do conceito de bem viver e, na Europa, em torno do conceito de commonfare.
Em ambos os casos assume-se o terreno do alterfordismo descolonial e do
chamado capitalismo cognitivo para pensar políticas de renda universal,
de produção do comum a partir de novas concepções de natureza e
cultura, de acesso e gestão comum dos recursos naturais/artificiais, de
mobilizações produtivas que não passam pelo neoextrativismo, pelo
crescimentismo ou formas de acumulação que hibridizam velho
desenvolvimentismo e neoliberalismo? Como pensar os direitos e a
democracia como ponto de partida e não de chegada do que convencionamos
chamar “desenvolvimento”?
No campo da denominada Reforma Urbana,
cuja origem remonta ao desenvolvimentismo social da década de 1960, não
há mais como adiar esse debate. É preciso superar o saudosismo de uma
regulação estatal distributiva e assumir inflexões que são urgentes: pensar o comum para além da função social da propriedade (da regulação pública para a auto-organização dos recursos urbanos), pensar a participação social
como coprodução e ocupação do urbano, para além do ideário cívico e da
delegação e representação nas instâncias participativas, pensar as lutas da metrópole e as novas plataformas de mobilização,
para além da forma-movimento tradicional e, fundamentalmente, ter
generosidade política e intelectual para deixar-se atravessar por essas
novas dinâmicas. Percebo que há uma geração de pesquisadores/ativistas
que já estão inteiramente mergulhados nesses desafios.
"Como pensar os direitos e a democracia como ponto de partida e não de chegada do que convencionamos chamar 'desenvolvimento'?"
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"Como pensar os direitos e a democracia como ponto de partida e não de chegada do que convencionamos chamar 'desenvolvimento'?
IHU On-Line – De que maneira a
viabilização de novas plataformas de mobilização estão imbrincadas com a
construção das políticas do comum?
Alexandre F. Mendes - O conceito de comum
nos ajuda a pensar também nas formas atuais de fazer política e luta na
metrópole. Poderia destacar dois pontos importantes das experimentações
realizadas nos últimos anos, cujo ponto de condensação foram as Jornadas de Junho de 2013,
que no Rio se estenderam de forma potente até, pelo menos, fevereiro de
2014. Em primeiro lugar, a liberdade de constituição das mobilizações.
Até 2013, as lutas da cidade eram majoritariamente protagonizadas por
movimentos sociais que já estavam consolidados na cidade e que encontram
seu ponto de origem, ou na década de 1980, ou na expansão do terceiro
setor dos anos seguintes. Em junho, o comentário das redes tradicionais
de ativismo era que finalmente tornava-se possível “participar de
protestos e encontrar pessoas totalmente novas fazendo política”.
Quem eram essas pessoas? Como estavam se
organizando? Por que estavam nas ruas? As incertezas geradas pela
novidade produziram um efeito paradoxal: por um lado, apareceu um número
de pessoas nas ruas e nas redes que realmente intimidou o poder e o fez
assumir, de forma momentânea, várias demandas clássicas do movimento
social; por outro, o estranhamento gerou uma série de questionamentos
sobre as formas de organização, a gramática e a
estética das lutas, a autonomia da mobilização, a presença ou não de uma
narrativa segura ou um “projeto claro” etc. Do sindicalismo de
categorias fechadas, imaginou-se um novo sindicalismo metropolitano
baseado na produção social do espaço e nos trabalhadores da cidade
(assembleias populares, ocupas, a luta dos garis, dos professores, tendo
como ponto de conexão o bem viver na metrópole); da lógica centralizada
de convocação para ações políticas e transmissão de informações,
criou-se uma rede polifônica de autoconvocação, de
produção de imagens, signos e novos enunciados; da forma coordenada e
hierarquizada de organizar atos e protestos, testaram-se composições
transversais, múltiplas e de código aberto.
Linguagem comum
Uma linguagem comum foi criada a partir de uma circulação contundente e afetiva: “Amarildo”,
como sabemos, foi um dos nomes dessa linguagem. Sem dúvida, foi o
momento de uma riqueza comum e infinita. Infelizmente, depois da
restauração operada em 2014, através de uma mistura de repressão,
chantagem interna realizada no período eleitoral e performances
repetitivas no campo do ativismo, essa experiência de liberdade
desapareceu. A grande vitória (de Pirro) do governismo foi ter destruído
a imaginação e a liberdade de junho colocando-o novamente sob direção
das organizações tradicionais enfraquecidas que negociam permanentemente
com a cúpula petista. O resultado é o abandono atual, pelas chamadas “forças de esquerda”,
de qualquer possibilidade de interação com a indignação social e de uma
base material para a construção de sentidos radicalmente democráticos. A
chamada “onda conservadora”, que domina o Congresso e parcialmente as
ruas, não pode ser vista como um raio que caiu de um céu azul, ela é o
resultado imediato do aniquilamento da potência criativa e rebelde da multidão de junho.
IHU On-Line – De que maneira a
criação de novos dispositivos políticos de radicalização democrática são
emperrados pela lógica que fez emergir um consenso autoritário?
Alexandre F. Mendes - A irrupção de 2013 significou um forte dissenso com relação à ideia de um Brasil Maior,
um país de suntuosos projetos, grandes obras, agrobusiness e
megaeventos alavancados sobre um terreno de desigualdade, racismo,
péssimos e caros serviços urbanos, problemas estruturais nos serviços
sociais, ausência de direitos básicos etc. No mesmo movimento operou-se
uma dinâmica destituinte desse tipo de concepção de “desenvolvimento” e
um poder constituinte que expressava outra ideia de democracia, produção
do urbano e de bem viver na cidade e na floresta. É certo que, depois
do susto, houve uma restauração “por cima” realizada
por uma calculada reestruturação das forças de segurança em âmbito
nacional e estadual e um vigilantismo que, mesmo atabalhoado,
transformou as redes em territórios extremamente vigiados.
Por exemplo, a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática - DRCI, no Rio de Janeiro, funciona como um verdadeiro DOI-CODI
dos novos movimentos, instaurando inquéritos que envolvem boa parte dos
coletivos e redes que se propõem a prolongar democraticamente o
dissenso. Mas confesso que, ultimamente, tenho refletido sobre a
restauração realizada “por baixo”, aquela que parte da premissa que a
Soberania, hoje, só consegue se exercer através de um biopoder capilar e insidioso.
Participei recentemente de uma banca de mestrado sobre a luta das
prostitutas do prédio da Caixa em Niterói (Brandão, 2015), uma luta
importante que questionava a gentrificação promovida por uma operação
urbana consorciada de “revitalização”. E o que é narrado no trabalho?
Que uma prostituta por ter participado de uma audiência pública sobre o
caso foi sequestrada e passou a ser ameaçada de morte. Que a polícia
civil, sem qualquer ordem judicial, invadiu os apartamentos do prédio
espalhando o pânico entre as trabalhadoras. Que em razão do ativismo as
protagonistas do movimento estão sem trabalho e sobrevivendo com o apoio
de ONGs. Posso dizer, a partir da minha experiência anterior de
defensor público e por acompanhar vários casos parecidos até hoje, que
isso se repete diariamente no Rio de Janeiro.
Que tipo de biopoder é esse?
Que tipo de biopoder é
esse que encara o dissenso democrático mais elementar como uma razão
para represálias brutais? Como uma pessoa pode ser ameaçada de morte por
participar de uma audiência pública? E outro ponto curioso do trabalho,
o prefeito que enviou os projetos legislativos da OUC e enaltece a “revitalização” desconsiderando a luta das prostitutas é do Partido dos Trabalhadores. Não digo isso para dizer que o PT
responde diretamente por todas as camadas de violência que se formou no
Brasil através de séculos, mas para afirmar que ele não demonstra mais
qualquer incômodo de participar dos empreendimentos especulativos
sustentados por uma trama urbana que é mafiosa e truculenta. Ora, e se
colocamos o fato publicamente, se afirmamos a indistinção dessa forma de
fazer política com relação à forma dos partidos brasileiros tradicionais e reacionários
(PMDB, PSDB, DEM etc.), olhos abismados ou debochados serão
direcionados para nós, como se estivéssemos anunciando um absurdo. Nesse
sentido, o novo arranjo (a)político que se formou no pós-eleição, ou seja, a ideia de que vivemos uma polarização
entre uma direita fascista e uma esquerda vitimada, é mantido
capilarmente por um extensa rede de relações sociais e comunicacionais
que tenta recuperar grandes escalas de consenso a partir da resposta a
estímulos, diria “jogos de cena”, lançados nas redes.
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"O
desafio é constituir novamente uma multidão de mídias que afirme o
dissenso com criatividade, liberdade e recupere uma comunicação viva"
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O “homem mediatizado”, figura analisada pelo filósofo Antonio Negri
num livro recente, não é apenas aquele que é silenciado pela grande
mídia. A subjetividade mediatizada é aquela que perde completamente a
capacidade de distinguir a informação viva (a linguagem comum das lutas)
da informação morta (a linguagem vazia do poder), destituindo-se de
qualquer potência de criação. O fato escandaloso não é a simples
utilização dos “robôs” que multiplicam a propaganda das redes sociais. O
incrível é perceber a operação no campo da produção de subjetividade,
que transforma sujeitos insurgentes em simples reprodutores de um
marketing cada vez mais falacioso. Nesse sentido, para além do binarismo
“mídia hegemônica” versus “mídia contra-hegemônica”, o desafio é
constituir novamente uma multidão de mídias que afirme o
dissenso com criatividade, liberdade e recupere uma comunicação viva
que rompa com o atual “governo das condutas” operado nas redes.
"O
desafio é constituir novamente uma multidão de mídias que afirme o
dissenso com criatividade, liberdade e recupere uma comunicação viva"
IHU On-Line – Partindo do
diagnóstico realizado, como seria possível desbloquear as plataformas de
radicalização democrática para além da imposição do consenso?
Alexandre F. Mendes -
Acredito que o primeiro desafio é sentir-se livre para a experimentação
de muitas formas de comunicação, encontros, momentos de trocas, reflexão
e ação no espaço metropolitano. É evidente que não há fórmula a ser
seguida e que o fundamental é termos uma multiplicação de iniciativas
diversas que retomem a abertura de espaços de ação político-afetiva no território. Pessoalmente, tenho participado dos chamados círculos de cidadania,
que surgiram com o propósito bastante modesto de promover algumas ações
cidadãs no urbano, a partir de dinâmicas territoriais, social-sindicais
e de reflexão sobre o momento político. É interessante notar que um dos
últimos textos de Henri Lefebvre discutia o papel da cidadania
no horizonte globalizado e metropolitano do capitalismo contemporâneo.
Para ele, uma cidadania no mundo urbanizado passava pela inflexão do
cidadão formal (o citoyen de base nacional) para o citadino: aquele que é
capaz de ações políticas e de construir poéticas próprias para uma vida
urbana plena. Nesse sentido, como produzir uma cidadania
“a quente”, que nos permita viver a metrópole como uma experiência do
comum? É uma pergunta que nos permite imaginar um repertório de
possíveis respostas e tentativas, e uma boa parte delas já está sendo
ensaiada no terreno vibrante e, ao mesmo tempo, perigoso, das metrópoles
globais.
Por Ricardo Machado e Patricia Fachin