PICICA: "Já entendemos que vivemos em um sociedade disciplinar que busca apenas e cada vez mais corpos dóceis.
Sim, a prisão existe como ponto onde todas as técnicas disciplinares
são aplicadas em sua máxima intensidade. Mas ela, desde seu surgimento,
falha em sua suposta missão de redimir, reinserir, curar e
ressocializar. Se esta instituição vive e se mantém em contradição, qual
seu sentido? Por que, afinal, existem prisões? A resposta está no
fenômeno da delinquência."
Foucault – Ilegalidade e Delinquência
Já entendemos que vivemos em um sociedade disciplinar que busca apenas e cada vez mais corpos dóceis.
Sim, a prisão existe como ponto onde todas as técnicas disciplinares
são aplicadas em sua máxima intensidade. Mas ela, desde seu surgimento,
falha em sua suposta missão de redimir, reinserir, curar e
ressocializar. Se esta instituição vive e se mantém em contradição, qual
seu sentido? Por que, afinal, existem prisões? A resposta está no
fenômeno da delinquência.
As prisões, assim como a pena de morte,
não diminuem as taxas de criminalidade; depois de sair da prisão, a
chance de voltar para ela aumenta comprovadamente; a prisão devolve para
a sociedade, depois da expiação da pena, indivíduos potencialmente mais
perigosos, muito mais revoltados e marginalizados; a prisão, por sua
própria estrutura, facilita a formação e manutenção de organizações
criminosas; a prisão é extremamente custosa para o Estado, direta e
indiretamente, e faz cair na miséria a família dos detentos. Ainda
assim, apesar de todo absurdo irracional de se trancar alguém em uma
cela por anos a fio, ela prevalece como a forma máxima de punição.
O sucesso é tal que, depois de um século e meio de ‘fracasso’, a prisão continua a existir, produzindo os mesmos efeitos” – Foucault, Vigiar e Punir
Isto acontece porque o modelo de prisão não pode ser abandonado. Os recursos para o bom adestramento, técnicas disciplinares, o modelo panóptico
são extremamente eficientes para conduzir e gerir a sociedade. A
disciplina veio pra ficar, ela corre em paralelo com o modelos jurídico
(da mesma forma que hoje a sociedade disciplinar também convive com a de
controle). O disciplina prisional apenas reflete o ponto máximo onde
incide um modelo para toda a sociedade: disciplina, poder, organização,
controle técnico, classificação, correção, fonte de objetificação e
conhecimento.
O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão?” – Foucault, Vigiar e Punir, p. 257
Sim, a prisão faz parte de um modelo de
sociedade, desta forma, não pode ser corrigida pontualmente. E é aqui
que nasce o delinquente:
A técnica penitenciária e o homem delinquente são de algum modo irmãos gêmeos” – Foucault, Vigiar e Punir
O que importa no delinquente não é o ato
em si, mas sua história. Todos nós somos estudados como potenciais
infratores: todos são suspeitos, todos são potenciais transgressores da
lei, isso é especialmente verdadeiro em zonas de exclusão social ou
minorias étnicas e religiosas (aqui nascem, por exemplo, as figuras do
terrorista e do “trombadinha”). Talvez daí a sensação constante de nos
sentirmos culpados, a técnica disciplinar cria um modelo de conduta que
mede indivíduos singulares para colocá-los em uma linha estatística de
periculosidade e culpabilidade.
O delinquente nasce como justificativa
para a disciplina e a disciplina é parteira desde nascimento. Não
interessa mais a lei, não interessa se ele vai cometer um crime ou não, a
disciplina já está lá atuando, em maior ou menor grau, e justificada
por meio de programas policiais que mostram os perigos de se sair na
rua. O securitizado é a figura subjetiva que brota desta relação.
Apresentá-los como bem próximos, presentes em toda parte e em toda parte temíveis. É a função do noticiário policial que invade parte da imprensa e começa a ter seus próprios jornais. A notícia policial, por sua redundância cotidiana, torna aceitável o conjunto dos controles judiciários e policiais que vigiam a sociedade” – Foucault, Vigiar e Punir
Trata-se de mostrar que o infrator
existia antes do crime. A psicologia foi (e ainda é) cúmplice na criação
de uma etologia das classes perigosas. O ato foi julgado e o infrator
punido, mas o delinquente carrega o crime consigo, ele nunca está
completamente curado, carregará sempre esta mancha. A delinquência
estabelece ainda um lugar imprescindível para a economia e a forma de
vida atual. Não há espaço para desperdício, não há fora, não é possível o
degredo. A nova moral é “tolerante” o bastante para subordinar aqueles
que não se enquadram.
A delinquência tem um papel econômico
importantíssimo. Ela permite que famílias inteiras fiquem reféns dos
altos muros de seus condomínios caríssimos; a própria vida está salva,
em sua forma submetida. E é também esta mesma delinquência que vende
maconha para a mãe, cocaína para o pai e LSD para o filho. É esta
delinquência que gira a roda de corrupção dos políticos na luta contra a
legalização das drogas e etc. Polícia, prisão e delinquência são
engrenagens que giram sempre juntas.
A delinquência era por demais útil para que se pudesse sonhar com algo tão tolo e perigoso como uma sociedade sem delinquência. Sem delinquência não há polícia. O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinquente?” – Foucault, Microfísica do Poder
As figuras marginalizadas servem de
ameaça: comunistas, terroristas, traficantes, imigrantes, prostitutas.
Qualquer figura serve para preocupar o homem de bem, cujos bons costumes
estão sempre em perigo. Para além da lei, a prisão. Para além das
linhas morais, a produção constante, através das técnicas disciplinares,
de indivíduos politicamente dóceis e economicamente rentáveis. O
delinquente constitui o elo de ligação entre o indivíduo perdido,
monstruoso, quebrador do pacto social, subversor dos costumes, e o
indivíduo integrado, homem de família, defensor dos bons costumes; ele
costura o tecido social de cima a baixo. Temos medo deles e de nós
mesmos, afinal, todos somos criminosos em potencial, ou pelo menos
aprendemos a conviver com esta sensação. Mesmo assim, a figura do
delinquente não pode ser eliminada de nossa estrutura geral de nosso
cotidiano. Nossa sociedade precisa da figura do delinquente tanto quanto
a igreja precisa da figura do Diabo.
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