PICICA: "Para compreender o
racismo no Brasil é preciso se libertar da zona de conforto e ir além.
Como já denunciou o antropólogo Kabenguele Munanga, o racismo brasileiro
é um crime perfeito, um racismo sem racistas, um crime sem ator."
A imprensa e a luta contra o racismo
Esquizofrenia. Essa foi a doença
utilizada para justificar a agressão física e verbal a um senegalês no
centro da cidade de Londrina, norte do estado do Paraná, no começo de
setembro. Ngale Ndiaye é vendedor ambulante e mantém seu ponto de venda
em frente ao prédio em que reside a agressora. Aos gritos de “preto
fedido”, “macaco” e “ladrão”, a moradora jogou bananas no imigrante e
exigia que ele mudasse seu ponto de venda. A humanidade, a dignidade e
os direitos de Ngale foram negados neste ato.
Esse é apenas mais um caso de discriminação entre tantos outros vividos e presenciados no cotidiano brasileiro. Ação explícita que causou a revolta de muitos que passavam pelo local. Mais do que depressa, pessoas que assistiram a cena e a imprensa, que cobria, tentaram amenizar a situação. Uma senhora, emocionada, pediu desculpas à vítima em nome da pessoa agressora e do país, afirmando que aquela não era uma atitude típica dos brasileiros, que somos corteses etc. Essa foi a principal perspectiva na cobertura jornalística do fato.
Como desmembramento da cobertura, um jornal da cidade aproveitou a ocasião para abordar o tema da crise de imigração europeia e os diversos refugiados na cidade. Por que não podemos dizer que o caso de Ngale foi xenofobia? Ele foi atacado por causa da cor da sua pele, e não por seu país de origem.
Os principais sintomas da esquizofrenia são delírios e alucinações. O doente desenvolve crenças em fatos irreais que não possuem base na realidade. Na simplicidade dessa descrição, penso que vivemos uma esquizofrenia social, que insiste em negar o óbvio. Para compreender o racismo no Brasil é preciso se libertar da zona de conforto e ir além. Como já denunciou o antropólogo Kabenguele Munanga, o racismo brasileiro é um crime perfeito, um racismo sem racistas, um crime sem ator.
O regime de castas deixou legados
Pensar o racismo como caso isolado, como exceção, é um dos principais erros que cometemos ao refletirmos sobre como acontece este fenômeno no país do futebol. Numa metodologia foucaultiana, sugiro pensarmos sobre as capilaridades do racismo. Do micro para o macro. Interpretar cada ato de discriminação racial como casos isolados e desconexos reforça a ideia do “mito da democracia racial”, que o racismo está no ar, que ninguém o pratica.
É imprescindível refletir como o racismo se estrutura e é estruturado por ações cotidianas, seus efeitos e consequências. Para, quem sabe assim, podermos construir uma sociedade efetivamente menos preconceituosa. Reforçar a ideia de uma igualdade desejável, porém utópica, como já apontou Florestan Fernandes (2008), apenas cumpre a função de preservar as distancias sociais, econômicas e culturais em nosso país.
O racismo é operante em nossas relações como mecanismo de hierarquia social, quando um ser humano se identifica como sendo mais digno e detentor de mais direitos do que o outro. É preciso admitir que o regime de castas operante no período escravocrata deixou legados nas nossas relações raciais que ainda não conseguimos nos desvencilhar. A negação da humanidade de africanos foi a justificativa usada para o regime de trabalho escravo. Isso soa familiar?
A esquizofrenia social na/da mídia
Diversas estratégias foram utilizadas para a manutenção dos privilégios sociais herdados do período escravista. A principal delas são as nossas relações raciais. O entendimento de que as vivemos harmonicamente por sermos um país miscigenado é a máxima operante, e este fato é utilizado para minimizar possíveis enfrentamentos sociais diretos. A orientação moral do brasileiro foi historicamente de tolerar [utilizo o verbo tolerar no sentido de suportar com indulgência, ou seja, sempre com um mal estar aparente] a diversidade, desde que esta não interfira ou transgrida o seu padrão de normalidade. Talvez, essa pode ser esta uma das causas da nossa dificuldade de enxergarmos o abismo que separa brancos e negros em nosso país.
Qual o lugar dos veículos de comunicação na manutenção deste padrão?
Como já apontou Muniz Sodré (1999), a mídia é o intelectual coletivo deste poderio. Os discursos midiáticos tecem uma rede de produção e reprodução do preconceito e do racismo. “Funcionam também como uma espécie de ‘grupo técnico de imaginação’, responsável pela absorção, reelaboração e retransmissão de um imaginário coletivo atuante nas representações sociais” (pág.244).
Sodré aponta quatro fatores operantes do racismo mediáticos: 1) a negação, ou seja, “a mídia tende a negar a existência do racismo, a não ser quando este aparece como objeto noticioso”; 2) o recalcamento, a repressão de aspectos positivos das manifestações simbólicas de origem negra; 3) a estigmatização, segundo Goffman, estigma é a marca de desqualificação da diferença que sucinta juízo de inferioridade sobre o outro. Ou seja, num país de dominação branca, a pele escura tende a tornar-se um estigma; 4) a indiferença profissional, por se organizar empresarialmente, quando a obtenção do lucro é o objetivo principal, os profissionais da mídia pouco se interessam por questões referentes a discriminação do negro e das minorias.
O caso de Ngale teve repercussão nos noticiários locais devido à não conformidade do comportamento da agressora com o padrão moral da sociedade brasileira. Em âmbito nacional, o racismo é discutido, apenas, como tema esporádico, dissociado da realidade e do seu contexto.
Por uma outra comunicação
O discurso da atriz Viola Davis na premiação do Emmy Awards no último domingo (20/09) foi emblemático. Ganhadora do premio de melhor atriz dramática, Viola resgata a humanidade de todos os descendentes de africanos escravizados na Diáspora quando afirma que o que separam brancos e negros em nossa sociedade são as oportunidades.
Para combater o nosso imaginário preconceituoso é fundamental que sejam pensadas políticas públicas que promovam a diversidade étnica e racial dos agentes dos veículos de comunicação. Se quisermos ter um país realmente igualitário é preciso que ações práticas sejam feitas.
O geógrafo Milton Santos, ao pensar o processo de globalização, propunha o entendimento de que ela era composta por três perspectivas: a primeira seria o mundo como nos fazem ver (a globalização como fábula), a segunda o mundo tal como ele é (a globalização como perversidade) e uma outra globalização, ou o mundo como ele pode ser.
Conduzindo este olhar para a comunicação, penso que nossa produção na mídia flutua entre os veículos como fábula e tal qual eles são, perversos, que segrega e discrimina.
Chegamos ao tempo em que, pensar uma outra comunicação se faz necessário para se (re)pensar a identidade nacional e a verdadeira democratização da mídia.
Compreendendo a importância de seu papel neste cenário, a Federação Nacional do Jornalista, tem desenvolvido ações neste sentido como a criação de Comissões de Jornalista pela Igualdade Racial (Cojiras) em diversos estados. Recentemente esta iniciativa foi implementada no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Norte do Paraná. Este é um primeiro passo para se efetivar a discussão sobre qual o papel dos profissionais e sua qualificação para a cobertura em casos que envolvem as questões de raça, gênero e etnia.
Pensar o racismo na/da mídia e os meios de se enfrentar preconceito racial nos meios de comunicação é o caminho que temos para combater a esquizofrenia social que nos assola e caminhar em direção de uma sociedade efetivamente democrática.
Referências bibliográficas
Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol 1. – 5ª ed. – São Paulo, SP: Globo, 2008.
Santos, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. – 6ª ed. – São Paulo, SP: Ed. Record, 2001.
Sodré, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
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Silvia Elaine Santos de Castro é jornalista
Esse é apenas mais um caso de discriminação entre tantos outros vividos e presenciados no cotidiano brasileiro. Ação explícita que causou a revolta de muitos que passavam pelo local. Mais do que depressa, pessoas que assistiram a cena e a imprensa, que cobria, tentaram amenizar a situação. Uma senhora, emocionada, pediu desculpas à vítima em nome da pessoa agressora e do país, afirmando que aquela não era uma atitude típica dos brasileiros, que somos corteses etc. Essa foi a principal perspectiva na cobertura jornalística do fato.
Como desmembramento da cobertura, um jornal da cidade aproveitou a ocasião para abordar o tema da crise de imigração europeia e os diversos refugiados na cidade. Por que não podemos dizer que o caso de Ngale foi xenofobia? Ele foi atacado por causa da cor da sua pele, e não por seu país de origem.
Os principais sintomas da esquizofrenia são delírios e alucinações. O doente desenvolve crenças em fatos irreais que não possuem base na realidade. Na simplicidade dessa descrição, penso que vivemos uma esquizofrenia social, que insiste em negar o óbvio. Para compreender o racismo no Brasil é preciso se libertar da zona de conforto e ir além. Como já denunciou o antropólogo Kabenguele Munanga, o racismo brasileiro é um crime perfeito, um racismo sem racistas, um crime sem ator.
O regime de castas deixou legados
Pensar o racismo como caso isolado, como exceção, é um dos principais erros que cometemos ao refletirmos sobre como acontece este fenômeno no país do futebol. Numa metodologia foucaultiana, sugiro pensarmos sobre as capilaridades do racismo. Do micro para o macro. Interpretar cada ato de discriminação racial como casos isolados e desconexos reforça a ideia do “mito da democracia racial”, que o racismo está no ar, que ninguém o pratica.
É imprescindível refletir como o racismo se estrutura e é estruturado por ações cotidianas, seus efeitos e consequências. Para, quem sabe assim, podermos construir uma sociedade efetivamente menos preconceituosa. Reforçar a ideia de uma igualdade desejável, porém utópica, como já apontou Florestan Fernandes (2008), apenas cumpre a função de preservar as distancias sociais, econômicas e culturais em nosso país.
O racismo é operante em nossas relações como mecanismo de hierarquia social, quando um ser humano se identifica como sendo mais digno e detentor de mais direitos do que o outro. É preciso admitir que o regime de castas operante no período escravocrata deixou legados nas nossas relações raciais que ainda não conseguimos nos desvencilhar. A negação da humanidade de africanos foi a justificativa usada para o regime de trabalho escravo. Isso soa familiar?
A esquizofrenia social na/da mídia
Diversas estratégias foram utilizadas para a manutenção dos privilégios sociais herdados do período escravista. A principal delas são as nossas relações raciais. O entendimento de que as vivemos harmonicamente por sermos um país miscigenado é a máxima operante, e este fato é utilizado para minimizar possíveis enfrentamentos sociais diretos. A orientação moral do brasileiro foi historicamente de tolerar [utilizo o verbo tolerar no sentido de suportar com indulgência, ou seja, sempre com um mal estar aparente] a diversidade, desde que esta não interfira ou transgrida o seu padrão de normalidade. Talvez, essa pode ser esta uma das causas da nossa dificuldade de enxergarmos o abismo que separa brancos e negros em nosso país.
Qual o lugar dos veículos de comunicação na manutenção deste padrão?
Como já apontou Muniz Sodré (1999), a mídia é o intelectual coletivo deste poderio. Os discursos midiáticos tecem uma rede de produção e reprodução do preconceito e do racismo. “Funcionam também como uma espécie de ‘grupo técnico de imaginação’, responsável pela absorção, reelaboração e retransmissão de um imaginário coletivo atuante nas representações sociais” (pág.244).
Sodré aponta quatro fatores operantes do racismo mediáticos: 1) a negação, ou seja, “a mídia tende a negar a existência do racismo, a não ser quando este aparece como objeto noticioso”; 2) o recalcamento, a repressão de aspectos positivos das manifestações simbólicas de origem negra; 3) a estigmatização, segundo Goffman, estigma é a marca de desqualificação da diferença que sucinta juízo de inferioridade sobre o outro. Ou seja, num país de dominação branca, a pele escura tende a tornar-se um estigma; 4) a indiferença profissional, por se organizar empresarialmente, quando a obtenção do lucro é o objetivo principal, os profissionais da mídia pouco se interessam por questões referentes a discriminação do negro e das minorias.
O caso de Ngale teve repercussão nos noticiários locais devido à não conformidade do comportamento da agressora com o padrão moral da sociedade brasileira. Em âmbito nacional, o racismo é discutido, apenas, como tema esporádico, dissociado da realidade e do seu contexto.
Por uma outra comunicação
O discurso da atriz Viola Davis na premiação do Emmy Awards no último domingo (20/09) foi emblemático. Ganhadora do premio de melhor atriz dramática, Viola resgata a humanidade de todos os descendentes de africanos escravizados na Diáspora quando afirma que o que separam brancos e negros em nossa sociedade são as oportunidades.
Para combater o nosso imaginário preconceituoso é fundamental que sejam pensadas políticas públicas que promovam a diversidade étnica e racial dos agentes dos veículos de comunicação. Se quisermos ter um país realmente igualitário é preciso que ações práticas sejam feitas.
O geógrafo Milton Santos, ao pensar o processo de globalização, propunha o entendimento de que ela era composta por três perspectivas: a primeira seria o mundo como nos fazem ver (a globalização como fábula), a segunda o mundo tal como ele é (a globalização como perversidade) e uma outra globalização, ou o mundo como ele pode ser.
Conduzindo este olhar para a comunicação, penso que nossa produção na mídia flutua entre os veículos como fábula e tal qual eles são, perversos, que segrega e discrimina.
Chegamos ao tempo em que, pensar uma outra comunicação se faz necessário para se (re)pensar a identidade nacional e a verdadeira democratização da mídia.
Compreendendo a importância de seu papel neste cenário, a Federação Nacional do Jornalista, tem desenvolvido ações neste sentido como a criação de Comissões de Jornalista pela Igualdade Racial (Cojiras) em diversos estados. Recentemente esta iniciativa foi implementada no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Norte do Paraná. Este é um primeiro passo para se efetivar a discussão sobre qual o papel dos profissionais e sua qualificação para a cobertura em casos que envolvem as questões de raça, gênero e etnia.
Pensar o racismo na/da mídia e os meios de se enfrentar preconceito racial nos meios de comunicação é o caminho que temos para combater a esquizofrenia social que nos assola e caminhar em direção de uma sociedade efetivamente democrática.
Referências bibliográficas
Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol 1. – 5ª ed. – São Paulo, SP: Globo, 2008.
Santos, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. – 6ª ed. – São Paulo, SP: Ed. Record, 2001.
Sodré, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
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Silvia Elaine Santos de Castro é jornalista
Fonte: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
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