dezembro 02, 2015

David Capistrano da Costa Filho – um combatente que faz falta. Por Ubiratan de Paula Santos (PÁGINA 13)

PICICA: A pergunta que não quer calar. Diante de um PT irreconhecível, Davizinho, se ainda estivesse entre nós, continuaria no PT ou teria rompido como fez com o PCB?

David Capistrano da Costa Filho – um combatente que faz falta

29 de novembro de 2015
Por Ubiratan de Paula Santos*, do Página 13

David_Capistrano

Cerca de 350 pessoas entre amigos, companheiros e familiares de David Capistrano da Costa Filho e diversas entidades da área da saúde participaram, em auditório da Faculdade de Saúde Pública da USP, de um tributo, no dia 10 de novembro passado, por ocasião do 15o aniversário de sua morte.

Nascido no dia 7 de julho de 1948, veio de histórica família comunista. Sua mãe, Maria Augusta, hoje com 97 anos, iniciou desde muito jovem a militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB), no Estado da Paraíba. Seu pai, também chamado David, foi um lendário dirigente da organização, lutou na guerra civil espanhola e na resistência francesa, foi eleito deputado estadual por Pernambuco, pelo PCB e foi membro de seu Comitê Central. Está entre os assassinados e desaparecidos pela ditadura militar.

David, o filho, desde a adolescência, em Recife, sua cidade natal, destacou-se como um dos mais talentosos e valentes militantes de sua geração. Participou do movimento secundarista e universitário, aos 15 anos de idade foi detido em Recife, pelo exercito, no golpe de 1964.

Devido às perseguições em Pernambuco e com o pai na clandestinidade mudou-se para o Rio de Janeiro. Estudante da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde se formou, esteve sempre presente na primeira linha da resistência estudantil e popular contra a ditadura militar, várias vezes preso e torturado por seu ativismo e filiação ao Partido Comunista Brasileiro.

Depois de formado, mudou-se para São Paulo e se especializou em pediatria e saúde pública, rapidamente tornando-se um dos principais expoentes do movimento pela reforma sanitária.
Ao mesmo tempo, convertia-se no principal dirigente da reconstrução do PCB paulista, desempenhando a função de secretário político entre 1976 e 1983.  Suas críticas à linha política oficial do PCB, oposta à mobilização popular como principal eixo da ofensiva final contra a ditadura, acabaria levando-o à ruptura, ao lado de muitos camaradas. Sua opção natural foi se integrar, em 1986, ao Partido dos Trabalhadores, que emergia como o principal instrumento da classe operária e do povo brasileiro durante a redemocratização. Foi membro do Diretório Nacional do PT por vários anos, até que em meados da década de 1990 deixou de fazer parte da Direção do PT, tendo iniciado um debate onde criticava a americanização do Partido, como expresso no texto: Sobre a “diferença” e outros prêt-à-porter publicado na Revista Teoria & Debate, em 1995, do qual reproduzimos, pela atualidade, os três parágrafos a seguir:

“a forma americanizada de se organizar politicamente não é um obstáculo para o crescimento de um partido, desde que não tenha em seu horizonte alterar a dominação em vigor. O que não é o caso – supostamente – dos partidos de esquerda. Se entre seus objetivos está modificar a fundo o status quo, o organizar-se apenas para a luta eleitoral conduz a terríveis dilemas”….

“partidos que se organizam em função do sistema eleitoral podem até ser partidos com vocação para o governo, mas não para o poder. Agrupamentos de direita resignam-se em tornar-se governo e governar segundo uma lógica ditada de fora do governo – isto é, pelas instituições de reprodução do domínio capitalista. Contudo, partidos de esquerda que se deixam submeter a essa lógica não podem fazê-lo sem entrar em aberta contradição com seu programa e objetivos…

“Não está no horizonte de um agrupamento político que se submete à lógica eleitoral disputar a hegemonia na sociedade. Interessa-lhe simplesmente a apropriação da máquina estatal e, por meio dela, mobilizar a seu favor os meios que as classes dominantes colocarem a seu dispor. Não é necessário construir meios próprios e eficazes de comunicação com o povo, nem formar militantes para a luta cultural e ideológica, e muito menos para a administração do Estado.

“Para os que se sujeitam a essa dinâmica, a vida interna do partido entre uma eleição e outra lhes é indiferente. O que importa é cavar espaços nas instituições e meios de comunicação já existentes.” 

Foi um dos principais um dos principais combatentes pela saúde pública e a construção do Sistema Único de Saúde no Brasil. Sua experiência no desenvolvimento de ações concreta para atender a população em diversas cidades e locais onde esteve, junto com sua capacidade teórica, lhe deu papel de protagonista de primeira linha na saúde pública brasileira. Sua participação foi decisiva para a formulação teórica do Sistema Único de Saúde e sua inclusão na Constituição de 1988, animando projetos, entidades e pessoas para dobrar o conservadorismo privatista no setor.

Construiu sua experiência ainda como estudante no Rio de Janeiro, depois em unidade de saúde em Franco da Rocha, teve ação destacada na direção da Unidade de Saúde na Vila Prudente, cuja ação centrada na preocupação com a saúde da população lhe rendeu perseguição por parte do deputado Manoel Sala, expoente do Malufismo nos anos 70, que o levou a um exílio na Secretaria de Abastecimento. Atuou no Vale do Ribeira onde além de ações na atenção à saúde contribuiu com a formação de estudantes de medicina e de saúde pública.  Foi secretário de Saúde em Bauru (1983-1985), na gestão do prefeito Tuga Angerami, onde desenvolveu ações inovadoras na implantação da rede de atenção à saúde, na implantação de programa materno infantil, de saúde dos trabalhadores e mental, entre tantos. De 1989-1992 foi secretário de Saúde em Santos, cidade da qual seria eleito prefeito em 1992, sucedendo sua companheira de partido, Telma de Souza.

Sob seu comando, Santos transformou-se em uma das principais referências mundiais da luta contra a AIDS. Também se tornou a primeira cidade brasileira sem manicômios, impulsionando a reforma psiquiátrica e servindo de exemplo para outras cidades e países.

No dia 10 de novembro de 2000, depois de cirurgia para transplante de fígado, maltratado por hepatite e quimioterapias por ocasião do tratamento contra leucemia que o acometeu em 1982, a vida de David chegaria ao fim, aos 52 anos.

Faleceu jovem, mas teve tempo de deixar um vasto legado de experiências, histórias e ideias que será lembrado por seus amigos e companheiros.

Destaco em David atributos que faziam dele um companheiro, cuja falta, trouxe consequências.
Suas características:

1. Coragem política, de remar contra a maré, não abdicava de defender ideias que acreditava porque a chamada “opinião pública” defendia outras. Não se importava em ficar bem com o dominante. O que é diferente de sectário, de buscar o isolamento por defender o impossível.

2. Era um homem de ação, um realizador como atesta suas passagens como homem público e político nos locais onde trabalhou. Não aceitava esperar a criação de condições materiais e humanas para agir. Era a partir de suas inciativas, com o que tinha no momento que conquistava apoios para ampliar as ações de saúde. Era um juntador de pessoas, as mais diversas. Aproveitava o que cada uma podia contribuir. De cada um de acordo com suas capacidades.

3. Era avesso à palavra planejamento, não porque não era necessário prever e planejar ações, mas porque, sob o manto do planejamento, governantes justificam a postergação de ações inadiáveis num país desigual como o Brasil. Era incapaz de aceitar o sofrimento, mesmo de uma pessoa. Não aceitava a concepção de que tudo é difícil e de nada adianta salvar uma vida. Salvar uma vida, embora pudesse não fazer diferença estatística, sinalizava um comportamento humanitário, solidário a ser buscado na vida familiar e em sociedade.

4. Não era sectário, trabalhar com todos que o procuravam. Não pedia atestado partidário ou de tendência, era regido pelo compromisso com a realização de ações que pudessem enfrentar problemas postos.

5. Como secretário de saúde e prefeito, homem público nunca deixou de marcar presença política. Considerava que a função de governante não se resumia a de síndico. Foi assim, que como prefeito lutou no campo da saúde combatendo políticas do governo federal de então, como pode ser visto em carta endereçada ao Presidente FHC onde apoiou proposta da criação da CPMF de Adib Jatene, onde dizia: “Essa opção preferencial pelos especuladores fica muito bem espelhada num dos argumentos dos ministros José Serra e Pedro Malan contrários à proposta de Jatene: eles alegam que os recursos provenientes da criação de um imposto financeiro seriam mais bem utilizados para pagar a dívida interna“ Ou por ocasião da greve dos Petroleiros, quando além de enviar manifestação em defesa dos trabalhadores e da Petrobrás ao então presidente FHC, o adjetivou de meliante, pela ação truculenta contra os trabalhadores em greve. Ou seja, como prefeito e já na época como membro da 1ª gestão do PT em Santos, ajudou a desenvolver e aplicar o conceito de que ao assumir o poder público o partido de esquerda deve ser um aliado dos trabalhadores, dos pobres; governava para todos, mas tinha lado. Foi essa determinação que motivou a intervenção e fechamento da Casa de Saúde Anchieta, um “depósito” de pacientes com doenças mentais. A estatização da companhia de transportes coletivos que em mãos privadas explorava pelo preço e maus serviços o povo trabalhador. Incentivando a paralização da cidade toda em apoio aos portuários que haviam sido demitidos no governo Collor, obrigando o governo ao recuo. Quando batalhou pela criação do Diário Oficial Urgente, que passou a não só noticiar os atos oficiais do governo municipal, como servir de veículo de informação para a população, com a visão e versão da administração em contraposição ao que fazia o jornal a Tribuna feroz adversário da gestão petista, de seu caráter intervencionista/estatista.

Intelectual refinado, ávido pelo conhecimento e pelo novo e com grande capacidade de análise politica David foi dos homens indispensáveis. David Capistrano faz falta.

* Ubiratan de Paula Santos é médico, foi dirigente estadual do PCB (1976-83) e militante do PT, foi secretário de governo na gestão David Capistrano, em Santos

Fonte: Página 13

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