PICICA: Imediatamente depois da sessão do STF, Globo, Estadão e Folha publicaram editoriais lamentando a decisão. O curioso é que nenhum desses editoriais polemizava com a argumentação presente no voto de Lewandowski, mas repetia falácias já desmontadas por ele. Referindo-se à cor da pele como “obsessão importada” (puxa, avisem isso para o nosso sistema carcerário!), a Folha, por exemplo, afirmou: A Constituição estipula que todos são iguais perante a lei. É um princípio abstrato; inúmeras exceções são admitidas se forem válidos os critérios para abri-las. A ninguém ocorreria impugnar, em nome daquele preceito constitucional, a dispensa de pagar Imposto de Renda para os que detêm poucos recursos. O cerne da questão, portanto, consiste em definir se há justiça em tratar desigualmente as pessoas por causa do tom da pele ou se seria mais justo, no empenho de corrigir a mesma injustiça, tratá-las desigualmente em decorrência do conjunto de condições sociais que limitaram suas possibilidades de vida. A Folha não parece atinar para o fato de que “exceções” como a isenção de imposto de renda para os mais pobres visam justamente efetivar o princípio da igualdade, tratando de forma desigual aqueles que são desiguais no mundo fático exatamente para fazer valer o princípio constitucional. Não se trata, portanto, de uma “exceção”, mas da aplicação do princípio.
O julgamento das cotas no STF: Balanço de uma vitória histórica
O Supremo
Tribunal Federal, na semana passada, julgou improcedente a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 186, ajuizada pelo DEM, que pedia
à Suprema Corte que declarasse a inconstitucionalidade das cotas para
negros nas universidades públicas. A decisão foi unânime: 10 x 0, com o
Ministro Dias Toffoli tendo se declarado impedido por já haver emitido,
como Advogado Geral da União, um parecer favorável às cotas. Para todos
os efeitos, trata-se, então, de um sonoro 11 x 0. Segundo o testemunho
de Carmen Feijó, do Tribunal Superior do Trabalho, foi a primeira vez
que ela viu uma decisão do STF ser aplaudida no plenário depois do
encerramento da sessão.
Tendo escrito vários textos em defesa das cotas desde o ano de 2005, o que mais me chamou a atenção desta vez foi a enormidade do massacre argumentativo. Os amici curiae
arrolados pelo DEM, da advogada Roberta Fragoso Kauffman às
inacreditáveis representantes do “Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro” e
do “Movimento contra o Desvirtuamento do Espírito da Política de Ações
Afirmativas nas Universidades Federais” recorriam, na melhor das
hipóteses (quando não protagonizavam embaraçosos vexames) à sofismática
conhecida: a doce e gingada malemolência mestiça brasileira, a
impossibilidade de se definir quem é negro, a tradição supostamente não
segregada das nossas relações raciais, a existência de brancos pobres
(os quais só parecem ser lembrados quando se trata de garantir direitos
para a população negra), a estranhíssima referência ao princípio da
igualdade para negar reparação àqueles que nunca foram tratados como
iguais até, por fim, a falácia que subjaz, explícita ou implicitamente, a
todas as anteriores: no Brasil não existe racismo. A Procuradora
Deborah Duprat, em aproximadamente cinco minutos, dizimou todos os
argumentos usualmente evocados para negar aos negros o benefício dessas
medidas de reparação, com uma clareza que não deixava margens a dúvidas.
Higienópolis povoada de brancos, Capão Redondo
povoado de negros e pardos. A USP povoada de brancos (exceto na faxina,
nas cozinhas, na vigilância) e os presídios povoados de negros e pardos.
As reuniões de banqueiros e executivos compostas de brancos, garis e
flanelinhas majoritariamente negros. Mas, segundo o argumento daqueles
que se opõem às cotas universitárias para negros, seriam estas que
instalariam as “divisões perigosas”,
de acordo com o título do livro que reúne os apóstolos da guerra santa
contra as medidas de reparação. O país atravessou quase 400 anos de
escravidão, os negros ganham, em média, metade dos brancos, continuam
sendo as vítimas preferenciais da violência policial e totalizam 70% dos
miseráveis, mas estranhamente, segundo a advogada Roberta Fragoso
Kauffman, só na semana passada, com a decisão do STF, passou a existir racismo no Brasil! O poeta e jurista Pádua Fernandes não deixou de notar a ironia: não se falou de “divisões perigosas” enquanto vigoravam as cotas exclusivas para brancos.
Há que se dizer aqui que se trata de uma grande
derrota da mídia brasileira. Durante toda a década, mesmo depois de ela
própria noticiar que a experiência das cotas não produziu o tão
propalado “ódio racial”, que os alunos cotistas tiravam notas iguais ou melhores que os não-cotistas, que a evasão entre aqueles era menor,
em nenhum momento a mídia brasileira revisou a sua dogmática
constantemente contradita pelos fatos (há duas exceções que devo
mencionar aqui: Elio Gaspari e Miriam Leitão sempre defenderam as
cotas). Como afirmou muito bem
o Walter Hupsel, isso nem precisava ter chegado à Suprema Corte. Mas,
já que chegou, que se releia quantas vezes for necessário esse maravilhoso voto e que se reitere: o placar foi 10 x 0.
Imediatamente depois da sessão do STF, Globo, Estadão
e Folha publicaram editoriais lamentando a decisão. O curioso é que
nenhum desses editoriais polemizava com a argumentação presente no voto
de Lewandowski, mas repetia falácias já desmontadas por ele.
Referindo-se à cor da pele como “obsessão importada” (puxa, avisem isso
para o nosso sistema carcerário!), a Folha, por exemplo, afirmou: A
Constituição estipula que todos são iguais perante a lei. É um
princípio abstrato; inúmeras exceções são admitidas se forem válidos os
critérios para abri-las. A ninguém ocorreria impugnar, em nome daquele
preceito constitucional, a dispensa de pagar Imposto de Renda para os
que detêm poucos recursos. O cerne da questão, portanto,
consiste em definir se há justiça em tratar desigualmente as pessoas por
causa do tom da pele ou se seria mais justo, no empenho de corrigir a
mesma injustiça, tratá-las desigualmente em decorrência do conjunto de
condições sociais que limitaram suas possibilidades de vida. A
Folha não parece atinar para o fato de que “exceções” como a isenção de
imposto de renda para os mais pobres visam justamente efetivar o princípio da igualdade,
tratando de forma desigual aqueles que são desiguais no mundo fático
exatamente para fazer valer o princípio constitucional. Não se trata,
portanto, de uma “exceção”, mas da aplicação do princípio.
O “conjunto de condições sociais” que “limitaram suas
possibilidades de vida”, no caso dos negros, inclui a herança de quase
400 anos de escravidão; um cotidiano de discriminação e ataques à sua
autoestima; constante violência policial; sobrerrepresentação entre os
pobres, miseráveis e presos, e subrrepresentação entre os diplomados e
ricos, realidades que têm impacto devastador sobre as crianças negras –
todos eles fatos amplamente demonstrados por uma montanha de números,
estudos, estatísticas. Mas, curiosamente, o Estadão acredita que o fator não econômico e estritamente racial nunca foi esclarecido na exposição da ministra nem nos votos de seus colegas, como se não tivesse ficado amplamente demonstrado, mais uma vez, que a pobreza no Brasil tem cor.
A coleção de falácias derrotadas no STF tenta agora
se reciclar. Tendo ignorado durante uma década os estudos que mostram
que os cotistas se saem igual ou melhor que os não cotistas nas
universidades, os proponentes da guerra santa agora se utilizam desse
dado sociologicamente comprovado para argumentar que, bem, já que eles
se saem melhor, então não precisa de cota! É a falácia reciclada por este texto de Simon Schwartzsman, já devidamente desmontada por André Egg. Schwartzsman consegue descobrir a pólvora ao afirmar: Se
eles têm pior desempenho nos vestibulares ou no ENEM mas têm melhor
desempenho nos cursos, isto indica que existem sérios problemas no ENEM e
nos exames vestibulares, que precisariam ser corrigidos.
Parabéns, anti-cotistas! Precisamos de uma surra de
10 x 0 na Suprema Corte para que vocês descobrissem que há “sérios
problemas” com as instituições supostamente meritocráticas que tanto
defendiam. Quem sabe, com mais um pouquinho de esforço, vocês consigam
ouvir a experiência da população negra, colocar-se, por um minuto que
seja, no lugar do outro, questionar seus dogmas e começar a enxergar a
realidade efetivamente existente numa das sociedades mais racistas do
planeta.
Fonte: Outro Olhar
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