maio 01, 2012

"O Sétimo Selo: Entre a Catástrofe e o Apocalipse ", por Hugo Albuquerque

PICICA: "A arte é a única coisa que resiste à morte" -- Malraux

O Sétimo Selo: Entre a Catástrofe e o Apocalipse

A Morte (Bengt Ekerot) joga xadrez com o cavaleiro Antonius Block (Max von Sydow)
"A arte é a única coisa que resiste à morte" -- Malraux

O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, Suécia, 1957), do mestre Ingmar Bergman é, sem sombra de dúvida, um dos maiores filmes da história do cinema. A narrativa do cavaleiro que retorna das Cruzadas para sua Suécia devorada pela peste onde topa com a Morte em pessoa - com a qual disputa um jogo de xadrez no qual sua própria está em xeque - é amplamente conhecida, mas para além de todas as questões cinematográficas - a belíssima fotografia, que dá uma dimensão ímpar à solidão, o grande elenco etc - há um ponto central, de cunho filosófico, que merece ser examinado com cuidado: a temática da catástrofe definitiva, entificada e consubstancializada, como uma das questões permanentes da existência da cultura ocidental.

Trata-se, nesse aspecto, de uma película potente: ela se agencia com a temática existencialista, tão presente na Europa daqueles anos 50, tanto quanto a critica para, no fim das contas, a subverter. O Cavaleiro Antonius Block, cujo ceticismo foi construído tijolo a tijolo pela sua experiência de dez anos na Terra Santa, é um incrédulo: ele quer chegar a Deus pelo conhecimento e está pouco interessado pela fé vendida pelos padres - em relação à qual a plebe, não por acaso, só se aproxima nos seus momentos de mais agudo desespero como agora, com a peste negra devorando a costa sueca. Esse Deus não está em parte alguma. Block não o vê, não o encontra, é como se Ele existisse somente para aqueles que querem que eexista. Não bastasse isso, Block trava um mau encontro com a Morte feita pessoa, logo ao chegar: para protelar o fim de sua vida, ele parte para uma disputa desesperada, no tabuleiro de xadrez, contra Ela.

A peste está em toda parte e é sua onipresença praticamente invisível que alimenta o medo da morte, matéria-prima da economia da fé. Block é um angustiado por saber que está apenas protelando o improtelável para conseguir realizar seu encontro - enquanto seu escudeiro, como um Sancho Pança, está pouco preocupado com a melancolia, transitando com ironia por todos os planos alegremente. Enquanto isso, uma pequena companhia de teatro, formada por uma família e um chefe oportunista chega à vila, se metendo em confusões e tendo sua exibição comprometida por uma auto-de-fé. Enquanto tenta adiar seu momento final, Block se dedica, no fim das contas, a protegê-la da Morte que ronda a todos: mais do que uma grande estrategista, a Morte nos parece uma grande estratégia.

É essa família de atores, no fim das contas, a única a vencer a Morte: a arte é aquilo que escapa, nomadicamente, à entificação da morte - alegoricamente representada por uma morte pessoal - justamente por ter a fuga como condição de existência. É assim que ela fura a catástrofe, ao conseguir cruzar a floresta escura em direção a um festival - não fugindo à Morte [ou à morte na forma da peste] ou a abraçando, dois movimentos pendulares que afinal, coincidem; nem as especulações metafísicas, nem o empirismo, nem a fé, mas sim a Arte como afirmação definitiva da vida. É uma provocação potente de Bergman: fazer a inevitabilidade da morte - posta como centro de gravidade e, por isso, como suposta fonte de uma angústia inerente à condição humana, materializada no advento da Catástrofe - ser, de repente, ultrapassada por um movimento que lhe é alheio: a produção artística fecunda e despreocupada.

A Catástrofe - aqui na figura da peste negra, que é outro lado invisível da moeda que tem  por Cara a Morte - está posta na nossa civilização desde que ela tomou forma definitiva na Idade Média, com a amálgama entre o helenismo, a tradição romana e judaica na Europa tomada pelos germânicos. Não que a extinção humana - ou pelo menos da nossa humanidade - tenha saído realmente algum dia do horizonte - isso só o fez em relação àquelas espécies que foram extintas -, mas é fato que aquele modo de pensar que se dá a partir da perspectiva da extinção - do imaginário futurista que gira em torno do ressentimento pelo futuro ser apenas uma imagem - não é "natural", mas sim ele próprio produção e ordenação de conceitos e afetos voltado, por suposto, a um propósito - via de regra, econômico. 

"Não temos futuro" - como se pudéssemos tê-lo em qualquer outro lugar que não a nossa imaginação. A peste, a fome, a guerra, o cataclisma seja qual for é uma teia de relações cuja intervenção artística - a política aí inclusa - precisa se voltar, a todo instante, para evitar a obliteração, mas não é possível produzir com base na própria obliteração sem cair num vazio de angústias que apenas justifica e dá forma ao dispositivo - condicionando o hoje pela suposta concretude de um amanhã -, mas sim a partir da Vida que se busca afirmar num esforço permanente: nem contra, nem pelo Cataclisma, mas a despeito dele.
 
Fonte: O Descurvo

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