PICICA: "Contra o poder da igreja e a
opressão do capitalismo, não há melindres e resistências que os
desfaçam; então, até que as vísceras lhe saiam pela boca, o melhor é ser
casca grossa e suportar os solavancos da locomotiva. E assim, os muitos
dentes ocultos na multidão, vão viajando por essa vid`afora."
Até que ponto uma peça de teatro pode lhe ser útil?
Inspirado e adaptado à peça de teatro e posteriormente filme: “O
Pagador de Promessas” do novelista, roteirista e dramaturgo Dias Gomes;
ganhador da Palma de Ouro do festival de Cannes de 1962.
“Que ninguém nos acuse de intolerantes. E que todos se lembrem das
palavras de Jesus”: “Porque surgirão falsos profetas e falsos Cristos e
farão tão grandes sinais e prodígios que, se possível fora, enganariam
muitos”. – palavras do padre Olavo.
2015.
Pai cumpre promessa e caminha do Sul do país até o Palácio do Governo
para pedir uma ajudinha de cinco mil reais/por mês para a filha que
cursa medicina. Será que recebeu a graça pedida para a santa Maldi tá à
frente do governo Federal brasileiro? Certamente, esse pai não carregou a
cruz imitando Jesus Cristo. O mundo não permite boas réplicas
influenciáveis!
O mundo não permite mais a simplicidade, a humildade, o respeito, a
honestidade, o amor, a paz, a solidariedade, a sinceridade, a
benignidade, confiança, amizade, esperança, ingenuidade, carregar cruz.
Não, o mundo não permite mais nada. Não permite porque o Homem (exceto o
raro Zé-do-Burro) botou tudo a perder e fez da intolerância as trevas,
de onde ele veio, o seu retorno. Total escuridão absurda.
Na confluência das ruas Pangaré com Capim Santo, havia uma faixa
colocada de ponta a ponta com a inscrição em letras garrafais: “Agradeço
a Nossa Senhora das Mercedes pela graça alcançada”. Quem seria o
recebedor da graça? Para quem não sabe do que se trata, o mistério da
inscrição pode servir de estímulo e alento; pois, o dia de amanhã, a
Deus pertence.
Afirmar é para cartomantes, tarólogos, bruxos, mandingueiros,
leitores do sobrenatural e outros; mas o leitor já deve ter se deparado
com um Zé do Burro e oxalá, se não está fazendo o papel de um. Oras,
afinal, neste mundo de nosso Deus, de tudo pode se esperar. E na
hipótese disto não ter acontecido, cuspa para o céu a primeira pedra
quem nunca caiu acamado; ou teve um ente nessas condições, e acreditando
piamente em Iansã, que na crença católica é Santa Bárbara, fez uma
promessa em troca da melhora da doença; em troca da aprovação no
vestibular; para encontrar o dinheiro perdido; em agradecimento pela
viagem à praia; pelo cessar da diarreia; pelo prato de caruru; pela bala
perdida que escapou por pouco; pelo celular que deu pane quando a
mulher o pegou para atender a ligação da amante do marido, ou vice e
versa.
- Você pode enganar o trouxa de seu marido; mas a mim não! – é o que
Rosa ouve de Marli, esposa e lambisgoia de Bonitão nas horas vagas; que
por sua vez, é considerado o cafajeste das noites com sol e dias sem
lua. De noite ou de dia, cafetão todos os dias.
– Corno manso! – Marli completa a ofensa.
Pela troca do jegue por um fusca; para reatar o casamento que estava
em ruínas; pela palidez do filho que está com dor de lumbago; para
aumentar o Bolsa Família que não dá para comprar nem um quilo de farinha
de mandioca; pelo auxílio governamental pedido para à compra de
chinelos Havaianas, etc.
- Boa moça, se não tivesse casado com a humanidade. Dá, divide o que
tem com uma fração menor que a torcida do Corinthians, e maior que a
população do Brasil. – previsão estatística do Profeta.
Seja para o que seja, é pratica comum pedirmos auxílio aos santos
através de uma bem aventurosa promessa. Que como sabemos, não é cobiçar
as coisas alheias; apenas um pedido em troca da melhora daquilo que não
vai bem; do livramento do mal causado por uma atitude impensada. Pedir,
receber e pagar a graça alcançada faz parte do escopo cristão. Está
escrito na bíblia que “peça e receberás”. “Bata à porta e ela se
abrirá”. Mas para alcançar a benção e fazer do pedinte e penitente,
merecedor da dádiva; todos os requisitos prometidos devem ser atendidos.
Obviamente que em tempos de crise econômica, época que um pedaço de
jabá, o feijão, o arroz, o leite, o munguzá, o angu mesmo que encaroçado
e o barraco na favela, estão com preços astronômicos; os olhos da cara,
é descabível pensar que o leitor deixaria a casa e como parte da
promessa, espalharia colchões no chão para os pobres e desabrigados. E é
exatamente este o ponto que distancia, que diferencia a promessa feita
por Zé do Burro, que retalhou o terreno que possuía para os pobres. Com a
esperança que a santa interceda em nome de Deus, Zé do Burro cumpriu
parte da promessa doando aos pobres um pedaço de sua terra e como dizem
popularmente: “quem dá aos pobres, empresta a Deus”, ditado que ele
acreditou com a maior devoção.
Conjecturas a parte, pertencer a uma sociedade que ainda guarda em
seus recônditos o falso conceito de Deus, que esconde suas impurezas na
religião, fazendo-se de arcaica e provinciana enterra-se na hipocrisia
suas vicissitudes, é desalento para qualquer cidadão. E quanto mais
honesto, humilde, respeitoso, prestativo for; inversamente em proporção,
será o uso dele, pelo sistema social aterrador imposto.
Zé do Burro é um desses matutos do sertão, malhador da terra,
responsável com todos aqueles que estão ao seu lado; formador de bons
legados familiares e que ainda traz dentro de si a ingenuidade de
acreditar que a humanidade é igual a ele. Acredita que o ser humano é
aquilo que sai de sua boca; acredita que o olhar é a fidelidade da cara;
acredita que todas as pessoas sobrevivem honestamente; acredita que o
adultério é pratica somente entre os animais irracionais; enfim, Zé do
Burro idealiza um mundo em que a forma de conduta, a maneira de
sobrevivência dos beija-flores, das abelhas, das formigas representam a
liberdade, a conquista e a justiça em igual tamanho para todos. E atado
ao seu pedaço de terra, talvez ele pensasse assim para o resto da vida;
porém, quis o destino que o seu fiel amigo adoecesse e após fazer
inúmeras tentativas de cura mal sucedidas, prometendo carregar uma
pesada cruz no dia de ação de graças, apelou para Iansã.
- Maldito pagamento da promessa que veio em má hora! O choro e as
lágrimas de hoje serão dissipados pelo sorriso zombeteiro amanhã! Quanta
contradição e interesseiro é o ser humano!
- Tu ainda não viu nada, Zé do Burro! Os horrores do mundo, o espera, mais, bem mais à frente. Isto é o início.
- Você com essas suas palavras sem sal e sem sabor, não me desanima não, Profeta!
Esse
disparate social/urbano metia tanto medo em Zé do Burro, que não
largava a cruz um só segundo, nem mesmo se fosse para ir ao banheiro.
Impossibilitado de fazer as necessidades fisiológicas, porém mantendo-se
resignado em seu intuito de levar a cruz ao interior da igreja, também
passou o dia com fome.
Verdade, seu Zé do Burro! Às vezes o sorriso zombeteiro não espera
nem o amanhã; afinal, na rotina interativa entre os humanos da cidade
grande, se nada tens para oferecer, nada receberás como recompensa. E
você começou sendo recompensado com a infidelidade de Rosa. Mulher que
escolhera para esposa; para separar-se somente através da morte; no
entanto, bastou aparecer um canastrão de sorriso largo e fala fácil, que
ela abriu-lhe a caixa-porta-joia; o segredo íntimo das mulheres, o qual
você tanto respeitou e só buliu nele depois do casamento. Depois do
santo padre dizer: "Está liberado podem beijar-se; podem unir pelos com
pelos, debaixo do cobertor; mas, mantenha a vergonha, o pudor".
O padre! Com o santo pároco, não se brinca, pois é ele o representante
de Deus na Terra. Nas cidades, juntamente com o Delegado, tem poder para
soltar e prender; e o pior: praga enviada por ele é morte na certa. E
se vê-lo soltando marimbondos pelas ventas, é porque não caiu um centavo
no saco afunilado feito coador. Isto o irrita profundamente.
Reescrevendo a estória, o senhor sabe qual a diferença entre o padre, o
coador e a peneira?
- O coador é de pouca fé e o padre de muita fé. A peneira, num sei não!
- Acertou seu Zé do Burro; com uma diferença: o saco/coadar é do
padre e as peneiras são dos políticos e capitalistas. Embora as três
divindades sociais revessem os utensílios de vez em quando, caiu em seus
domínios, tá preso. A fé retém qualquer valor de qualquer
granulometria; e consequentemente, em seus aparatos, apenas entra. São
redes, peneiras e sacos sem fundo. E a prova é que o senhor nunca mais
ouviu falar na multiplicação dos peixes. Dispensam o auxílio até de
Cristo. Choram com as barrigas e os objetos cheios. O senhor me entende,
não?
- Não, o Galego tem razão. A santa pode ser a mesma, mas o padre tem
medo da concorrência e quer defender o seu negócio. – frase de Dedé,
sobre a aposta feita entre Coca e Galego. Aposta que, mais tarde é
refeita e passa envolver o três.
O dinheiro! Ó, o dinheiro, Zé-do-Burro; até que ponto ele está
interferindo em seu vexatório calvário de peregrinação? Depois que você
caminhou sessenta léguas com sua pesada e dolorosa cruz, parecido Jesus
Cristo fora de época e estacou resoluto onde está, a cidade nunca foi
mais a mesma. É burburinho para cá; aposta para lá; buchicho na outra
esquina. Fez com que a população da cidade ficasse feito formiga,
zanzando perdida, procurando saber por que, e com veio parar naquele
lugar. Uns bonzinhos oferecendo um lanche, outros um pedaço de cocada,
outros mais querendo saber somente para bisbilhotar, o que Rosa sua
esposa, chegou a dizer que “ajudar, querem ajudar...mas é desgraçar a
vida d´agente”.
E você Zé-do-Burro, forte, resistente, resignado. Clamando paciência a
Deus e ralhando contra os diabos que lhe importunam e não deixam você
entrar com a cruz na igreja e assim, terminar de cumprir a promessa. E
com isto, as horas passam e o dia já vai de velho e você continua
servindo de chacota; alvo de apostas até de um prato de caruru; servindo
de chamariz para trazer o povo para o comércio nas redondezas da praça;
matéria de capa para a imprensa da cidade. Você e a sua amada esposa já
se viram estampados no jornal de hoje? Com promessas de que lhes
servirão comida e um colchão puído para dormir; foguetório na volta com
carro batedor para escoltá-los e alarde internacional do homem que
imitou a Cristo, a imprensa quer que fiquem até segunda, pois, amanhã
não tem expediente e consequentemente, jornalistas e redação não
trabalham.
- O dinheiro, Zé-do-Burro! O dinheiro, trazendo felicidade / sempre ele /
para você / para quem quiser / que podem usufruí-lo / pois estão na
mais tenra flor da idade! - notou? Já fizeram até um versinho para você.
Por fim, seu Zé do Burro, léxico que és, reveja melhor, conte e
reconte as páginas do anacrônico dicionário que estás lendo; porque,
pelo que parece aos distantes e espantados olhos, as palavras humildade,
simplicidade e respeito ainda constam na edição lida. Sobretudo, para o
senhor que ainda acredita que para abnegar-se às impurezas do mundo;
que para se achegar, para pactuar fielmente com a existência de Deus em
sua totalidade, o homem tem que negar para sempre, o dinheiro; saiba,
creia que os tempos mudaram. Creia somente que falar que é fiel seguidor
de Deus é fácil; difícil é alguém negar o dinheiro. Creia que o
dinheiro é a pandemia contagiosa do mundo. E para tê-lo mais e mais,
justificam dizendo a mesma idiotice: “ora, infelizmente, preciso dele
para viver”.
Realmente seu Zé do Burro, o dinheiro é a moeda de troca instituída
pelo homem, para, e contra o homem. Todavia, nenhum perdulário soube até
hoje quanto ele precisa em bens materiais, moedas de ouro e prata para
sobreviver. À primeira vista, o senhor como abstênico às coisas mundanas
e aos vícios luxuriosos, parece estar certo em seu raciocínio. Pois,
diante das leis divinas, é impossível servir dois deuses ao mesmo tempo:
ou serve o Deus verdadeiro e absoluto, ou serve o deus falso, regido
pelas mentiras dos homens e o dinheiro. Esse último é fácil seguir e
encontra-se em qualquer esquina. Afinal, seu Zé do Burro, de corruptos,
corruptores, hipócritas, mentirosos, iníquos, ratos de despensa e
bonzinhos, o mundo está farto; isto fazendo uso do eufemismo, para não
dizer que o diabo está loteando o céu para acomodar os seus. O
contingente de honestos (agora que já entende o que é ser um honesto
moderno) é tão grande, que temo não ter vaga para o senhor quando partir
desta para uma melhor.
- É uma pena que seus conselhos tenham chegado atrasado; porque
enquanto meu burro está são e salvo, eu morri sem saber os porquês! Só
sei que foi no dia da celebração da Santa Barbara, conhecida como Iansã
pela crendice umbandista.
- Pois é seu Zé, burro é aquele que acredita que alguém faz milagre
nessa Terra. Jesus Cristo foi outro.
- Só você que pensa isso, Profeta! Por que o penitente/pedinte que
afixou a faixa à rua Pangaré, fora a graça alcançada, recebeu um burro
de presente. Cada cumpridor recebe a graça que merece. Eu, além de ser
corneado, chifrado pela minha mulher e muita humilhação, conheci os
calorosos abraços da morte.
Meus lamentosos pêsames! E realmente: os dicionários do mundo não tem
mais espaço para os simples de palavras, honestos de ações; ingênuos de
pensamentos e sensíveis de coração. Esteja onde esteja, que tenha melhor
sorte, seu Zé do Burro!
- Você não passa de mais um...
- Um, o quê, seu Zé do Burro?
- Quer mesmo saber? Não me insulte, porque senão eu delato!
- Desengasga, logo, vai!
- ...mais um falso Profeta no mundo. Pronto, falei!
- Agora pode falar mesmo! Vai entrar na igreja deitado debruço em
cima da cruz, com os braços abertos em forma de crucifixo; parecendo
Jesus Cristo fora de época. Avisei: “os horrores do mundo, o espera,
mais, bem mais à frente”. Agora minhas palavras possuem o sal do sangue e
o sabor da morte. Tarde demais para acreditar em mim.
- Findado o artigo, torno de conhecimento do leitor que o protagonista
Zé-do-Burro, sou eu. Mas, por favor, não tenha pena de mim. Tudo que fiz
e aconteceu comigo, foi por puro merecimento.
No sistema em que predomina o contra-senso religioso e o absolutismo
monetário, Zé do Burro é parte de uma engrenagem que vai sendo carcomida
aos poucos; e caso tente lubrificá-la, fatalmente, acelerará o processo
de desintegração dos mecanismos internos. Contra o poder da igreja e a
opressão do capitalismo, não há melindres e resistências que os
desfaçam; então, até que as vísceras lhe saiam pela boca, o melhor é ser
casca grossa e suportar os solavancos da locomotiva. E assim, os muitos
dentes ocultos na multidão, vão viajando por essa vid`afora.
- Findado o artigo, levo ao conhecimento público que o protagonista
Zé-do-Burro, sou eu. Mas, por favor, não tenha pena de mim. Por favor,
não tenha dó. Tudo que fiz e aconteceu comigo, foi por puro merecimento.
Motivo d´eu ter morrido feliz e com a consciência tranquila. Espero que
tenha o motivado a ser o segundo.
Semelhante a um lord Inglês, sentado
confortavelmente numa cadeira reclinável, desfiando o fumo de rolo para
encher o cachimbo e após tocar fogo nele, ter um ataque de inspiração
insólita, para o bem ou para o mal e numa baforada anelada e monstruosa,
tragar as quatro letras da palavra CAOS. Haja reflorestamento,
celulose, folha de papel e tantos parágrafos para definir uma palavra
miudinha, pequeninha mas causadora de epicentros! Abalos sísmicos!
.
Fonte: OBVIOUS
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