dezembro 03, 2015

Esquizoanálise – Tarefa Destrutiva. Por Rafael Trindade (RAZÃO INADEQUADA))

PICICA: "Deleuze e Guattari se esforçaram para salvar a metapsicologia da clínica psicanalítica, como se a criação de Freud tivesse sido pervertida por sua prática. Por isso, a primeira tarefa da esquizoanálise é negativa: liberar a clínica de toda interpretação, da transferência e recuperar o princípio de produção do inconsciente maquínico. O modelo de inconsciente da esquizoanálise recusa toda forma de representação, para isso é preciso fazer guerra contra a interpretose.

A pessoa já chega viciada no divã, ela já chega com uma análise pronta! É preciso quebrar com as análises fast-food, de shopping, marketeiras, ready made. O paciente já monta uma narrativa que impede a mudança, a intervenção, temos que destruir com ela. Esta primeira tarefa é piromaníaca: que se coloque fogo no teatro edípico, que se coloque fogo em todas as representações baratas que colonizaram nosso inconsciente.

A organização dos corpos nos faz viver um vida de baixas intensidades: subjetividades privatizadas. O horror da esquizoanálise são corpos que se relacionam sempre com os mesmos corpos, nestes casos é preciso primeiro matar o que te mata, desejar o teu declínio. Iniciar a tarefa destrutiva com a maior rapidez possível! Sim, rápido com isso, vamos! Colocar as cartas na mesa e separar a joio do trigo: isso me pertence ou foi imposto? Como Édipo me afeta? É possível ser mais, ir além?"
 

Deleuze e Guattari se esforçaram para salvar a metapsicologia da clínica psicanalítica, como se a criação de Freud tivesse sido pervertida por sua prática. Por isso, a primeira tarefa da esquizoanálise é negativa: liberar a clínica de toda interpretação, da transferência e recuperar o princípio de produção do inconsciente maquínico. O modelo de inconsciente da esquizoanálise recusa toda forma de representação, para isso é preciso fazer guerra contra a interpretose.

A pessoa já chega viciada no divã, ela já chega com uma análise pronta! É preciso quebrar com as análises fast-food, de shopping, marketeiras, ready made. O paciente já monta uma narrativa que impede a mudança, a intervenção, temos que destruir com ela. Esta primeira tarefa é piromaníaca: que se coloque fogo no teatro edípico, que se coloque fogo em todas as representações baratas que colonizaram nosso inconsciente.

A organização dos corpos nos faz viver um vida de baixas intensidades: subjetividades privatizadas. O horror da esquizoanálise são corpos que se relacionam sempre com os mesmos corpos, nestes casos é preciso primeiro matar o que te mata, desejar o teu declínio. Iniciar a tarefa destrutiva com a maior rapidez possível! Sim, rápido com isso, vamos! Colocar as cartas na mesa e separar a joio do trigo: isso me pertence ou foi imposto? Como Édipo me afeta? É possível ser mais, ir além?
A codificação do desejo, sua inserção em um regime familista, dizem Deleuze e Guattari, é uma armadilha, temos que nos precaver. Não se deve procurar por um núcleo edípico da subjetividade porque ele simplesmente não está lá. Existe vida fora do divã, e o esquizofrênico anda, passeia, longe do consultório abafado do psicanalista, para provar. É preciso destruir o “eu” normal, o neurótico típico, tirá-lo de seu pequeno conforto.

A psicanálise perde-se na vida burguesa, e a reproduz. Sua ortodoxia não compactua com devires-revolucionários. A clínica que supostamente deveria libertar, muitas vezes utiliza os mesmos dispositivos disciplinares que escravizam! Deleuze e Guattari querem salvar a psicanálise dela mesma, de uma clínica que faz o homem lutar por sua servidão como se fosse sua liberdade. Liberar a psicanálise do que ainda a faz um sistema de repressão. Tornar o pré-edípico em anedípico, só se pode dar conta de tal tarefa primeiro limpando terreno.

Não há material do inconsciente! Não há nada para ser encontrado, há tão somente máquinas e o uso que faz delas. Não há nada para ser descoberto, não há um pano em cima do inconsciente a ser tirado e revelar nossos segredos, se agimos assim, ainda nos comportamos como religiosos. O mundo é aqui, o inconsciente é aqui, ele se faz, refaz, constantemente. Há de se criar um inconsciente, mas para isso é necessário antes demolir ídolos. Afinal, somos máquinas ligadas a máquinas.

Destruir Édipo: desfazer as conexões familistas, destruir todas as canalizações do desejo para o seio familiar, quebrar o retrato de papai e mamãe e sair de casa para dar uma volta no quarteirão. Destruir a ilusão do Eu: quem diz quando falamos? Quem fala quando nos deitamos no divã? Há um analista em cada um de nós que sente prazer em representar este papel.

Somos servos de um discurso que não é nosso, aprendemos a falar uma língua, mas ainda não encontramos nosso jeito de se expressar! O fim do eu normal é o fim da máquina superaquecida, sua reforma, sua realocação, sua reformulação. Destruir o fantoche do Superego: aliar-se à potência do inconsciente sem necessidade de representações. O superego como prudência, como cuidado necessário para a potencialização dos encontros. Um passo para trás, dois para frente, há de se pensar em algum substituto para o superego que não seja o pai, a mãe, ou qualquer representante familiar.
Fora com a culpa, esta máquina de impotência: “você quis matar seu pai, você quis dormir com sua mãe“. Mesmo de modo simbólico, mesmo de modo teatral, fora com a culpa. Fora com os instintos que se voltam para dentro. Abaixo a lei! Abolição dos limites que constrangem, limitam, fecham. Pelo fim da castração: não ao fechamento dos fluxos, ao canto da triste, fraco. O esquizoanalista tem horror ao sujeito separado do que pode.

Na boca do impotente crescem presas venenosas com as quais ele contamina a si mesmo e o mundo ao seu redor, ele sussurra em nossos ouvidos: o desejo é falta. Mas Deleuze e Guattari já redimiram o desejo de sua versão hegeliana. O desejo é produção, é criação. Um pouco de desejo já coloca toda sociedade cheque. Não queremos conservar nada, as paredes precisam ser derrubadas, arejar os cômodos deste apartamento fechado, ar viciado. Deixem o Fora entrar, deixem a diferença entrar. O consultório do analista cheira a caverna platônica.

Desfamiliarizar e desedipianizar, ampliar o processo do inconsciente para além da família; descastrar, ligar o sujeito ao que ele pode; desfalicisar, desviar do poder, não ceder ao poder, ele é triste; destruir o teatro, reencontrar os índices maquínicos, as máquinas desejantes e produtoras de inconsciente; desfazer sonhos e fantasmas, encontrar a produção do real lá onde ela está, não em representações e interpretações, mas nos encontros, nos fluxos; descodificar e desterritorializar, romper com os limites impostos de fora, encontrar novos valores, desamarrar-se do poste da lei.

Wrecking_ball
A esquizoanálise deve empenhar-se com todas as suas forças nas destruições necessárias. Destruir crenças e representações, cenas de teatro. E para levar a cabo essa tarefa não há atividade malevolente que baste. Explodir Édipo e a castração, intervir brutalmente toda vez que um sujeito entoe o canto do mito ou os versos da tragédia, reconduzi-lo sempre à fábrica” – D&G, Anti-Édipo, p. 414
Reconduzir o inconsciente às oficinas, encontrar a matéria prima de criação, mobilizar os operários para que ocupem as fábricas, se organizem, se motivem. “Aqueçam as caldeiras!”, “joguem mais carvão!”, “aumentem a velocidade!”, estávamos funcionando em piloto automático, produzindo por produzir sem saber nem para quê nem para quem. O teatro é perigoso demais para começar por ele, fechem os teatros! Queremos ouvir o som dos martelos, das prensas, das engrenagens, das roldanas! Queimem todos os roteiros e nos tragam chaves de fenda!

Superestruturas e microestruturas são investidas pelo esquizoanalista, ele carrega consigo pregos, martelo, fita métrica, chave inglesa, serrote. Ele atua no real, cola, corta, lixa. Ele atua com presteza e cuidado, não queremos jogar fora o bebê com a água suja. Não queremos derrubar a casa por imprudência ou excesso de pressa: às vezes, só colocamos leite no café, e isso já maquina diferente, colocamos o chapéu de lado e já quebramos expectativas. São muitas as camadas em que um esquizoanalista opera. Ele vasculha de cima a baixo, procurando pelo sapato do pai que impede as engrenagens de rodar, ele encontra o anel de casamento da mãe que trava a máquina de seguir seu fluxo.

O que diz o psicanalista em nós? O que ele quer? Em que acredita? Substitui-se a família pelo divã: representantes imaginários, estruturas de reterritorialização, o neurótico é uma terra estéril. Mas ao mesmo tempo, toda tarefa de quebrar ídolos pede prudência: as máquinas edípicas estão embrenhadas com as máquinas revolucionárias (separando-as do que elas podem). O problema da psicanálise não é ser ineficaz, pelo contrário, ela funciona perfeitamente! É preciso desmontar sem deixar que o sistema todo desabe, há muita coisa útil embrenhada no inconsciente psicanalítico, a esquizoanálise procura pelos índices maquínicos de desterritorialização, só o passeio do esquizofrênico pode encontrar suas máquinas desejantes.

Enfim, esta é apenas a primeira tarefa, abrir caminho por entre  o pântano viscoso que prende as subjetividades e as faz rodar em círculos. O passo inicial, o começo de uma jornada que não para na simples destruição. Depois de desinfetar a casa de todo Império de Édipo, a esquizoanálise entra em sua tarefa mecânica.
A psicanálise fixa-se nos representantes imaginários e estruturais de reterritorialização, ao passo que a esquizoanálise segue os índices maquínicos de desterritorialização. Há sempre a oposição entre o neurótico no divã, como terra última e estéril, derradeira colônia esgotada, e o esquizo em passeio num circuito desterritorializado” – D&G, Anti-Édipo,  p. 419

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> este texto faz parte da série Esquizoanálise <

Fonte: RAZÃO INADEQUADA

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