PICICA: "Pasolini transfigurou também em poética a crítica política do fascismo, do provincianismo etc."
Pasolini e o nonsense da poesia
30/11/2015 por Lucio Carvalho
Pasolini transfigurou também em poética a crítica política do fascismo, do provincianismo etc.
Pois foi ali mesmo que, numa dessas visitas ocasionais, vi pela primeira vez a edição bilíngue dos poemas de Pier Paolo Pasolini, em italiano e português, organizada por Alfonso Bernardinelli e Maurício Santana Dias em 2015 para a Cosac Naify. O livro, ali entremeado a outras excelentes escolhas em uma das poucas prateleiras de poesia que dão gosto em vasculhar (normalmente são seções maltratadas nas hiperlivrarias), aqui em Porto Alegre, ganhou-me ao primeiro olhar. É que justamente abri as páginas em um trecho do poema “Gerarchia”/”Hierarquia”, em que Pasolini escreve sobre o Brasil e, como o próprio título diz, suas costumeiras hierarquias. O poema não está datado, mas tudo indica que tenha sido escrito no começo dos anos 70. Diz o seguinte:
(…) È cosi per puro caso che un brasiliano è fascista e un alto sovversivo,Obra do olhar estrangeiro ou da sensibilidade do poeta, é uma sensação incomodamente familiar, isso quase quarenta anos depois do seu falecimento. Folheando um pouco mais, é rápida a percepção de que as similaridades não param por aí. Isso porque a poética de Pasolini está permeada do seu olhar (talvez no caso dele fosse melhor dizer do seu “ser/estar”) para a sociedade e para a política, sobretudo a italiana, obviamente, e suas relações explosivas. Nos anos 70, Pasolini já não escandalizava a opinião pública do seu país pela sua crueza cinematográfica, mas por tornar-se um pensador visceral, capaz de sobressair-se da mera denúncia política, isso porque sua própria vida estava empenhada na subversão. E isto lhe aconteceu até mesmo para com a esquerda italiana e o PCI (Partido Comunista Italiano), ao qual filiou-se logo em torno de 1950.
colui che cava gli occhi
può essere scambiato con colui a cui gli occhi sono cavati. (…)
***
(…) É assim por pur puro acaso que um brasileiro é fascista e outro subversivo;
aquele que arranca os olhos
pode ser confundido com aquele cujos olhos são arrancados. (…)
A um tempo em que o engajamento político dava lugar a uma poesia de outra tonalidade, mais amena e transcendente, como em Eugenio Montale e Salvatore Quasimodo, seu trabalho poético mantinha-se à luz do espírito crítico e, talvez tendo paralelo adequado apenas entre alguns poetas norte-americanos do período, como os da geração beat, recusava-se a dobrar a espinha inclusive aos ditames ideológicos e aos próprios comunistas, principalmente entre os movimentos de juventude, questionando-lhes o caráter permanentemente.
Não foi por isso, entretanto, que em 1970 Pasolini foi expulso do PCI, mas sob a acusação de supostamente “seduzir” menores. Para ele, homossexual que não ocultava-se e que já tinha a inimizade dos religiosos, manter-se em pé já não era mais uma opção e até a data de seu obscuro assassinato, em 1975, Pasolini continuou publicando critica, prosa, politica e também poesia. “La nuova gioventu”, com versos como “Bisogna condannare/severamente chi/creda nei buona sentimenti/e nell’innocensa – É preciso condenar/severamente quem/crê nos bons sentimentos/e na inocência”, é do ano de sua morte. O poema é um dos que constam na coletânea editada agora pela Cosac Naify.
O livro, além de reunir poemas escritos durante toda a vida de Pasolini, traz a introdução do crítico e também ensaísta Alfonso Berardinelli, traduzido por Maria Betânia Amoroso, que também escreve o epílogo. Ela, estudiosa de sua poesia e uma das principais difusoras do seu trabalho, desde a época em que seus filmes eram proibidos no Brasil e seus poemas conhecidos apenas parcialmente, distende uma linha temporal sobre o reconhecimento do trabalho dele no Brasil. O livro ainda inclui um apanhado da bibliografia das traduções brasileiras, da crítica sobre sua obra literária e cinematográfica, bem como de suas próprias publicações como ficcionista, dramaturgo, roteirista, ensaísta, tradutor, critico e poeta. E também, claro, sua filmografia.
Se a poesia de Pasolini é muitas vezes contestada sobre sua qualidade, pelo seu caráter nitidamente mais político do que lírico, este não é um problema exclusivo dele e também não é um problema do que ele escreveu em versos, mas apenas do que conseguiu ler-se e depreender-se do seu trabalho literário, inclusive o poético. Pasolini, talvez um intelectual de um tipo incomum no Brasil, que não impôs limites em seu trabalho intelectual e sua vida privada, viveu seu tempo transfigurando também em poética a crítica política do fascismo, do provincianismo, da moralidade católica e de sua particular visão de mundo claramente marxista e impregnada do contato com a pobreza do pós guerra. Para ele próprio, a escolha de seus motivos poéticos dava-se como se por uma coação do real, da qual ele não podia nem queria livrar-se.
Por muito tempo taxado de panfletário, depois de quarenta anos de sua morte finalmente o Brasil ganha uma coletânea capaz de propiciar uma leitura abrangente de sua obra poética, justo no mesmo ano em que chega aos cinemas brasileiros o filme biográfico que o também italiano Abel Ferrara lhe dedicou, Pasolini, em que o ator Willem Dafoe o interpretou magnificamente, para quem desejar conhecer mais de sua biografia.
Goste-se mais ou menos, encontrar edições bilingues de poesia, e apresentadas com zelo apurado é uma boa experiênica ao estar de visita em uma livraria de verdade. Se alguém, depois de ler os seus versos e reconhecer muitas semelhanças com o Brasil contemporâneo em sua poética, ainda assim desejar defenestrá-lo ao estigma da poesia panfletária poderia muito bem em contrapartida indicar onde, na poesia brasileira, encontra-se um poeta que não defina-se senão como alguém nos píncaros da inspiração, mas no nonsense de escrever, como ele mesmo diz em entrevista celebrizada no YouTube. Nonsense para mim, portanto, continua sendo ter de esfregar e esfregar os olhos nessa busca ou, ainda pior, precisar encontrar quem nos interpretou, brasileiros de hoje, tão bem assim quanto Pier Paolo há décadas atrás.
Fonte: Revista Amálgama
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