dezembro 02, 2015

Pasolini e o nonsense da poesia. Por Lucio Carvalho (REVISTA AMÁLGAMA)

PICICA: "Pasolini transfigurou também em poética a crítica política do fascismo, do provincianismo etc."

Pasolini e o nonsense da poesia


Pasolini transfigurou também em poética a crítica política do fascismo, do provincianismo etc.

"Poesia de Pier Paolo Pasolini" (Cosac Naify, 2015, 320 páginas)
“Poesia de Pier Paolo Pasolini” (Cosac Naify, 2015, 320 páginas)

Em tempos de livrarias virtuais que oferecem ininterruptamente o paraíso e o inferno ao mero alcance do dedo, contar com uma livraria real a poucos quarteirões de casa deveria ser um descanso para os olhos, não fosse ser o lugar um primor na escolha dos títulos à venda. Eu diria que é uma perfeita otimização do espaço, constrastando a relação qualitativa normalmente ocupada pelas grandes empresas do ramo.

Pois foi ali mesmo que, numa dessas visitas ocasionais, vi pela primeira vez a edição bilíngue dos poemas de Pier Paolo Pasolini, em italiano e português, organizada por Alfonso Bernardinelli e Maurício Santana Dias em 2015 para a Cosac Naify. O livro, ali entremeado a outras excelentes escolhas em uma das poucas prateleiras de poesia que dão gosto em vasculhar (normalmente são seções maltratadas nas hiperlivrarias), aqui em Porto Alegre, ganhou-me ao primeiro olhar. É que justamente abri as páginas em um trecho do poema “Gerarchia”/”Hierarquia”, em que Pasolini escreve sobre o Brasil e, como o próprio título diz, suas costumeiras hierarquias. O poema não está datado, mas tudo indica que tenha sido escrito no começo dos anos 70. Diz o seguinte:
(…) È cosi per puro caso che un brasiliano è fascista e un alto sovversivo,
colui che cava gli occhi
può essere scambiato con colui a cui gli occhi sono cavati. (…)

***
(…) É assim por pur puro acaso que um brasileiro é fascista e outro subversivo;
aquele que arranca os olhos
pode ser confundido com aquele cujos olhos são arrancados. (…)
Obra do olhar estrangeiro ou da sensibilidade do poeta, é uma sensação incomodamente familiar, isso quase quarenta anos depois do seu falecimento. Folheando um pouco mais, é rápida a percepção de que as similaridades não param por aí. Isso porque a poética de Pasolini está permeada do seu olhar (talvez no caso dele fosse melhor dizer do seu “ser/estar”) para a sociedade e para a política, sobretudo a italiana, obviamente, e suas relações explosivas. Nos anos 70, Pasolini já não escandalizava a opinião pública do seu país pela sua crueza cinematográfica, mas por tornar-se um pensador visceral, capaz de sobressair-se da mera denúncia política, isso porque sua própria vida estava empenhada na subversão. E isto lhe aconteceu até mesmo para com a esquerda italiana e o PCI (Partido Comunista Italiano), ao qual filiou-se logo em torno de 1950.

A um tempo em que o engajamento político dava lugar a uma poesia de outra tonalidade, mais amena e transcendente, como em Eugenio Montale e Salvatore Quasimodo, seu trabalho poético mantinha-se à luz do espírito crítico e, talvez tendo paralelo adequado apenas entre alguns poetas norte-americanos do período, como os da geração beat, recusava-se a dobrar a espinha inclusive aos ditames ideológicos e aos próprios comunistas, principalmente entre os movimentos de juventude, questionando-lhes o caráter permanentemente.

Não foi por isso, entretanto, que em 1970 Pasolini foi expulso do PCI, mas sob a acusação de supostamente “seduzir” menores. Para ele, homossexual que não ocultava-se e que já tinha a inimizade dos religiosos, manter-se em pé já não era mais uma opção e até a data de seu obscuro assassinato, em 1975, Pasolini continuou publicando critica, prosa, politica e também poesia. “La nuova gioventu”, com versos como “Bisogna condannare/severamente chi/creda nei buona sentimenti/e nell’innocensa – É preciso condenar/severamente quem/crê nos bons sentimentos/e na inocência”, é do ano de sua morte. O poema é um dos que constam na coletânea editada agora pela Cosac Naify.

O livro, além de reunir poemas escritos durante toda a vida de Pasolini, traz a introdução do crítico e também ensaísta Alfonso Berardinelli, traduzido por Maria Betânia Amoroso, que também escreve o epílogo. Ela, estudiosa de sua poesia e uma das principais difusoras do seu trabalho, desde a época em que seus filmes eram proibidos no Brasil e seus poemas conhecidos apenas parcialmente, distende uma linha temporal sobre o reconhecimento do trabalho dele  no Brasil. O livro ainda inclui um apanhado da bibliografia das traduções brasileiras, da crítica sobre sua obra literária e cinematográfica, bem como de suas próprias publicações como ficcionista, dramaturgo, roteirista, ensaísta, tradutor, critico e poeta. E também, claro, sua filmografia.

Se a poesia de Pasolini é muitas vezes contestada sobre sua qualidade, pelo seu caráter nitidamente mais político do que lírico, este não é um problema exclusivo dele e também não é um problema do que ele escreveu em versos, mas apenas do que conseguiu ler-se e depreender-se do seu trabalho literário, inclusive o poético. Pasolini, talvez um intelectual de um tipo incomum no Brasil, que não impôs limites em seu trabalho intelectual e sua vida privada, viveu seu tempo transfigurando também em poética a crítica política do fascismo, do provincianismo, da moralidade católica e de sua particular visão de mundo claramente marxista e impregnada do contato com a pobreza do pós guerra. Para ele próprio, a escolha de seus motivos poéticos dava-se como se por uma coação do real, da qual ele não podia nem queria livrar-se.

Por muito tempo taxado de panfletário, depois de quarenta anos de sua morte finalmente o Brasil ganha uma coletânea capaz de propiciar uma leitura abrangente de sua obra poética, justo no mesmo ano em que chega aos cinemas brasileiros o filme biográfico que o também italiano Abel Ferrara lhe dedicou, Pasolini, em que o ator Willem Dafoe o interpretou magnificamente, para quem desejar conhecer mais de sua biografia.

Goste-se mais ou menos, encontrar edições bilingues de poesia, e apresentadas com zelo apurado é uma boa experiênica ao estar de visita em uma livraria de verdade. Se alguém, depois de ler os seus versos e reconhecer muitas semelhanças com o Brasil contemporâneo em sua poética, ainda assim desejar defenestrá-lo ao estigma da poesia panfletária poderia muito bem em contrapartida indicar onde, na poesia brasileira, encontra-se um poeta que não defina-se senão como alguém nos píncaros da inspiração, mas no nonsense de escrever, como ele mesmo diz em entrevista celebrizada no YouTube. Nonsense para mim, portanto, continua sendo ter de esfregar e esfregar os olhos nessa busca ou, ainda pior, precisar encontrar quem nos interpretou, brasileiros de hoje, tão bem assim quanto Pier Paolo há décadas atrás.

Fonte: Revista Amálgama

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