UNIBIÓTICA, NUNCA MAIS!
José Ribamar Bessa Freire
29/04/2012 - Diário do Amazonas
PICICA: "Uma
hora, contada no relógio, de exercícios, goles d´água e lavagem
cerebral. Porrada no corpo e agressão ao espírito. Eu era um trapo
humano, parecia que me haviam colocado dentro de um liquidificador."
- Oi! Você não quer "fazer unibiótica" comigo?
Olhei prum lado, pro outro, pra trás. Ninguém! Naquela hora, 6:10 da madrugada, o calçadão da praia, onde praticava o meu cooper,
estava deserto. Era óbvio, portanto, que o convite só podia ter sido
endereçado a mim. Mesmo assim, duvidei. Ah! Essa minha timidez com as
mulheres! Inseguro, gaguejei:
- Tá falando comigo?
Estava
sim. Ela confirmou. Era uma mulher dos seus trinta anos. Não era nenhum
"avião", mas eu também, coitado, não sou nenhum piloto de Boeing. Era
bonita, ossuda e de olhos tristes.
Meu
coração deu uma acelerada. Fiquei com uma vontade danada de dizer que
estava afinzão, querendão fazer aquela coisa com ela, embora eu não
soubesse que diabo era "unibiótica". Deduzi rapidamente: uni é um só, bio é vida, e ótica, bem, ótica
é ponto de vista. Da minha ótica, podia ser qualquer coisa: saliência,
por exemplo. Vai ver, ela está me convidando para unirmos nossas vidas e
nossos corpos num só, como na cantata em lá maior do Paulinho Kokay.
Será?
Foi aí que ouvi a voz do Mestre Moa - o grande mulherólogo do Amazonas aconselhando-me como nos velhos tempos:
- Primeira lição: nunca recuse qualquer convite de uma mulher. Jamais! Jamais! Jamais! -
ele repetia, com a mesma convicção doutoral com que, em sala de aula,
ensinava o teorema de Pitágoras ou os dispositivos de Briot-Ruffini.
Já
te apresentei o Mestre Moa, leitor? Não? Que falha! Moa é o Moacir
Lima, meu amigo, matemático, professor da Universidade Federal do
Amazonas, nas horas vagas mulherólogo de profissão, aposentado. Quer
dizer, aposentado como docente, mas em franca atividade como pensador
sobre as complexas relações homens & mulher, para as quais vem
dedicando especial atenção nos últimos anos. Convenceu-me da utilidade
das matemáticas, porque conseguiu desenvolver um modelo teórico que
aplica o cálculo das probabilidades ao processo de sedução.
As cantadas do Moa são todas respaldadas pela ciência. Por isso, segui os seus conselhos. "Sim, topo fazer ´unibiótica´ com você - eu disse à mulher dos olhos tristes. "Onde você mora? - ela disse. "Aqui pertinho" - eu disse. "Então, vai buscar uma toalha e uma garrafa de água, que eu te espero aqui" - ela disse. "Ta bem. Volto já", eu disse.
Desci
correndinho a rua, depois desse disse-disse, antes que decidisse mudar
de ideia. No caminho, temores me assaltaram. E se fosse uma armadilha? E
se quiserem me dar um flagrante de assédio sexual, sabendo que o "taquiprati" é forte, mas a carne é fraca, aliás, fraquíssima?
De
qualquer forma, por precaução, ao chegar à praia verifiquei se havia
alguém com uma máquina fotográfica detrás de alguma palmeira. Mas quem
eu vi foi ela, a ossuda de olhos tristes, cercada - que decepção! - por
umas vinte velhotas, cada uma delas com toalha e garrafinha.
Ela
apresentou-se. Era instrutora, paga pela Prefeitura para dar aulas
gratuitas de educação física às pessoas da terceira idade. Pediu-me para
preencher uma ficha com nome e endereço "para o pessoal da Secretaria ver que tem muita gente boa frequentando" . Devolvi a ficha preenchida e ela falou:
- Vamos começar nossa ginástica unibiótica. Hoje temos um novo participante.
Todo
mundo aplaudiu. Em seguida, as velhotas deitaram na toalha estendida
sobre a areia. Eu também. A instrutora se aproximou de mim e fez um
teste, beliscando meu chulezão. "Atenção! Seu pé caído é o esquerdo" - ela me disse. "E daí?" - eu pensei, sem perceber que diabo era um pé caído.
Daí,
começaram os exercícios. Movimentos rápidos, paradas bruscas. Entre um e
outro, todos nós bebíamos um ou dois goles de água, "bem devagarzinho, como se estivesse mastigando," ensinava a instrutora.
- Irrigação! -
ela gritou, como se fosse marcadora-de-quadrilha de São João. As velhas
deitadas levantaram os braços e as pernas, tremelicando com eles.
Tentei imitá-las como pude. Parada. Dois goles de água "mastigada".
- A água purifica o corpo e renova as células - pregou a instrutora, dogmaticamente, passando ao exercício seguinte:
- Leque com o pé caído - ela gritou. Macaqueando as velhotas, comecei a me abanar com o meu pé esquerdo. Paradinha. Gole d´água.
- Acelerador
- gritou novamente. Agora, com o pé direito no ar, eu fazia movimentos
como se estivesse acelerando um carro. Os movimentos simples e complexos
dos exercícios colocavam em jogo toda a massa muscular. A instrutora
marcava o ritmo, recitando frases, como quem canta rap: - "Eu-sou-feliz-porqueu-me-amo. Eu-sou-feliz-porqueu-te-amo. Eu-sou-feliz-porqueu-me-aprovo". Exigia que todos repetíssemos a ladainha. Censurou:
- O senhor Mauro está de boca fechada. Vamos, seu Mauro, repita!
O
senhor Mauro, leitor, era eu. Confesso que cometi uma falsidade
ideológica. Na hora de preencher a ficha, escrevi o endereço certo, mas
com vergonha do ridículo, lasquei o nome do meu dileto sobrinho, que
adotei como filho: Mauro Freire de Souza. Profissão: publicitário.
- Agora o exercício do peixinho!. Vamos, seu Mauro: eu-sou-feliz-porque-me-amo...
Ela
veio fiscalizar de perto, se eu estava mesmo recitando. Fiz igualzinho o
Dunga, cantando o Hino Nacional antes dos jogos da Copa América, num
gesto que os italianos definem como "dire l´orazione della bertuccia",
o que equivale a "rezar a oração do macaco", ou seja, fingir que se
reza, apenas movendo os lábios. Parada. Dois goles: glute, glute.
- Vamos ao exercício do sapinho - comandou a instrutora.
Ah,
amigo leitor, você não tem a menor ideia do que é o "pulo do sapinho"!
Se na outra encarnação eu nascer sapo, me suicido enforcado no próprio
cordão umbilical. É melhor morrer, do que fazer aquilo que a instrutora
me obrigou a fazer. É assim: deitado, você coloca as mãos como se
estivesse rezando e dá uma tesoura com as pernas. Aí, faz os movimentos
de um sapo pulando, só que deitado com a barriga pra cima. Nessas
alturas, eu já estava com o corpo todo moído, como se tivesse levado uma
surra. As duas bundas, eu as sentia, como se estivessem desparafusadas,
se descolando do meu corpo. Estava literalmente desbundado. O sapinho é
fogo, leitor. É phoogo mesmo, com "ph" de farmácia, dois "o" de
cooperativa, dois "d" de toddy e dois "a" de caatinga.
No
início, eu havia me sentido um gatinho no meio das velhotas. Mas agora,
já não conseguia mais acompanhar o pique delas. Humilhante!
Simplesmente hu-mi-lhan-te! Enquanto elas pererecavam, o sapinho me
nocauteava. Como se não bastasse, o exercício seguinte foi o denominado
‘João Teimoso’, onde você, sentado como um Buda, sobre suas próprias
pernas, balança o corpo pra frente, pra trás e pros lados.
- Seu Mauro, é o corpo toooooodo, não é só jogo de ombro não.
Estava
arrasado com o ritmo alucinante. Como é que aquelas velhas aguentavam e
eu não? Doía-me até os músculos da alma. Felizmente, veio a paradinha, o
glute-glute. Fiquei aliviado, quando a instrutora gritou:
- Relaxar. Hora da meditação transcendental!
De
olhos fechados, ouvíamos ela falar, com fanatismo, que a unibiótica
cura o câncer e a Aids. Aí, né, ela leu aquele texto manjado:
- Obrigado,
Senhor! Como é maravilhoso, Senhor, ver tantos aleijados e pernetas, e
eu com os meus pés. É maravilhoso, Senhor, com tantos cegos no mundo e
eu posso ver. Com tantos surdos, Senhor, mas eu posso ouvir, tantos
perebentos e caspentos e eu com a pele sadia... e por ai foi,
fazendo a apologia de um individualismo doentio, achando que o mundo era
pai d´égua, porque as pessoas estão ferradas e eu não. Era a filosofia
do "Fogo no mundo, que eu não me chamo Raimundo!!!"
Uma
hora, contada no relógio, de exercícios, goles d´água e lavagem
cerebral. Porrada no corpo e agressão ao espírito. Eu era um trapo
humano, parecia que me haviam colocado dentro de um liquidificador. E o
pior de tudo: não havia mais qualquer chance do senhor Mauro roer os
ossos da ossuda-de-olhos-tristes. Foi aí, então que veio o final
apoteótico. A instrutora agarrou minha mão, deu a outra para uma
velhinha, as velhinhas todas se deram as mãos, fizemos uma roda para
cantar uma ciranda de despedida. Não sei que cara eu tinha, porque ela
falou:
- O senhor Mauro está com vergonha? Se tiver, não precisa entrar na roda. Tem que ser espontâneo!
Olhei
pros quatro cantos. Não vi nenhum político corrupto, nem minhas duas
primas Dodora e Rosilene, que costumam andar nesta hora no calçadão. Se
elas me vissem, impiedosas como são, eu estava lascado. Então, com
vergonha de ter vergonha, respondi:
- Que vergonha que nada. Vamos lá!
E
saí, rodopiando com as velhotas, cantando
"eu-sou-feliz-porque-me-te-amo", com a música desta "ciranda quem me deu
foi Lia, que mora na ilha de Itamaracá". Se tivesse um fotógrafo a
serviço dos meus adversários, ele lavava a égua.
- Seu Mauro, esperamos o senhor amanhã, no mesmo horário.
Taqui-pra-ti, oh! Unibiótica, nunca mais! O mestre Moa um dia ainda me paga.
P.S.
Para atender o pedido de dois leitores, essa crônica foi redigitada e
incluída no site Taquiprati. Muitos anos se passaram e, de vez em
quando, chega para o meu endereço correspondência endereçada a Mauro
Freire de Souza, com propaganda da unibiótica. Guardo a correspondência
para mostrar ao meu neto Palmito, quando crescer, afim de que ele não
entre na fria em que entrou seu pai. Unibiótica, nunca mais. Never more!
Jamé de la vie. Ramás.
Fonte: TAQUIPRATI
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